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Artigo: COVID-19, desigualdade social e Direitos Humanos

Por Rogê Carnaval*

Em um mundo em que a concentração de renda cresce cada vez mais, o Brasil não se diferencia, e inclusive interrompe a tendência de diminuição das desigualdades sociais que vinha se verificando nos últimos 20 anos.

Como será que a desigualdade social, a concentração das riquezas em tão poucas mãos, especialmente no Brasil (que é um dos países mais desiguais do mundo), se materializa em tempos de covid-19? Como afeta os Direitos Humanos?

Em um contexto tão peculiar como o que vivemos em meio à pandemia de coronavírus, quais possibilidades estão postas para que possamos efetivamente diminuir o abismo social entre as classes, com o propósito de pensar uma sociedade brasileira mais equânime, mais equilibrada?

Ainda em 2014, o professor francês Thomas Piketty lançou sua mundialmente conhecida obra O capital no século XXI, em que demonstrava por meio de dados que a concentração de riquezas no mundo contemporâneo se aproximava dos mesmos níveis registrados no período anterior à 1ª Guerra Mundial. De 2014 para cá, o cenário permanece inalterado: a concentração de riquezas no mundo, e em particular no Brasil, continua aumentando. São pouquíssimas pessoas que detêm parcelas cada vez maiores de toda a riqueza produzida no mundo. Vejam esses
dados recentes compilados pela Oxfam Brasil:

  • Houve um aumento histórico no número de bilionários em 2017: um a cada dois dias entre março de 2016 e março de 2017. Atualmente há 2.043 bilionários no mundo. Brasil ganhou 12 bilionários a mais no período, passando de 31 para 43;

     

  • Nove entre cada 10 bilionários no mundo são homens;

     

  • A riqueza dos bilionários aumentou 13% ao ano, em média, desde 2010 – seis vezes mais rapidamente do que os salários pagos a trabalhadores, que tiveram aumento de apenas 2% por ano, na média, no mesmo período. Enquanto isso, mais da metade da população mundial vive com renda entre US$ 2 e US$ 10 por dia;

     

  • O patrimônio somado dos bilionários brasileiros chegou a R$ 549 bilhões em 2017, num crescimento de 13% em relação ao ano anterior. Ao mesmo tempo, os 50% mais pobres do país viram sua fatia da renda nacional ser reduzida ainda mais, de 2,7% para 2%;

     

  • O Brasil tem hoje cinco bilionários com patrimônio equivalente ao da metade mais pobre da população brasileira.

Em meio à pandemia, esse cenário se torna ainda mais injustificável. Estamos, muito possivelmente, às vésperas de uma das crises econômicas mais agudas que o capitalismo mundial já experimentou, com danos difíceis de mensurar. Assim, não é difícil antever que os efeitos da crise sobre as populações menos abastadas tendem a ser ainda mais cruéis do que os efeitos sobre o “andar de cima”, ou seja, as pessoas mais endinheiradas. Se é bem verdade que o coronavírus não escolhe quem vai infectar de acordo com a classe social, é bem verdade também que os efeitos sobre quem foi infectado tende a variar muito sim, de acordo com a classe social a que pertence o indivíduo.

Veja os dados do Conselho Federal de Medicina, de 2018: somente 532 dos 5.570 municípios brasileiros têm leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Isso equivale a menos de 10% dos municípios brasileiros, portanto. E mais: dos quase 45 mil leitos de UTI à disposição no Brasil, menos da metade (49%) está à disposição do Sistema único de Saúde (SUS). Os outros 51% pertencem à rede privada, destinada aos usuários de planos de saúdes e convênios. Ocorre que os usuários de planos de saúde respondem por apenas 23% da população. Ou seja: 23% da população tem à disposição 51% dos leitos de UTI do país, enquanto os outros 77%, usuários do SUS, dividem os 49% dos leitos de UTI existentes no Brasil.

De um modo mais amplo, a pobreza e a desigualdade aumentaram no Brasil nos últimos anos. Levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de 2019 demonstra que a desigualdade de renda aumentou no Brasil e alcançou o maior patamar já registrado em toda a série histórica.
Foram 17 trimestres consecutivos de aumento no índice que mede a desigualdade no país.

Thomas Piketty, por sinal, conduziu um estudo publicado em 2018 que vai na mesma direção das conclusões dos estudos da FGV: no Brasil, cerca de 30% da renda está nas mãos de 1% da população, a maior concentração do tipo no mundo. No mesmo levantamento, verificou-se que os 10% do andar de cima, do topo da pirâmide, abocanham mais da metade da riqueza: 55% de tudo que é gerado está nas mãos de 21 milhões de brasileiros. Os outros 190 milhões de brasileiros, dividem 45% da riqueza produzida no país.

As razões e as soluções
Historicamente, o Brasil é um país desigual. É um país que foi erigido com base no sacrifício de milhões: milhões de africanos escravizados, de indígenas aprisionados e executados, de trabalhadores braçais ultra explorados. Mudam os contextos históricos, perpetua-se um modelo
de exclusão social que nos coloca entre os países mais desiguais do mundo, ainda nos dias de hoje. A perversa concentração de riqueza no Brasil foi uma das marcas mais significativas do período colonial, uma questão, aliás, jamais enfrentada. A despeito do fato de que nos últimos 20 anos houve uma tendência de diminuição das desigualdades sociais, essa tendência já foi revertida e as desigualdades voltaram a crescer mais recentemente.

Agora, em um momento particularmente conturbado da vida social brasileira, em que uma pandemia colocará à prova toda sorte de decisões equivocadas dos últimos anos, em que assistimos ao corte de verbas destinadas à pesquisa, ao desenvolvimento científico, às universidades públicas de um modo geral; e também aos ataques desferidos contra a saúde pública, tratada cada vez mais como mercadoria. Ressurge, com algum eco na sociedade, a discussão sobre a importância da valorização da coisa pública, de um modo geral, e em especial na área da saúde e da educação.

E nesse mesmo bojo, vimos reascender também algumas discussões importantes para pensar em formas de efetivamente enfrentar as desigualdades historicamente consolidadas no nosso país. Nessa hora, resgatar o artigo XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos pode jogar luz no tema:

“Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle”.

Não se trata, portanto, de concessão ou benevolência. Como signatário da Declaração Universal do Direitos Humanos, e de acordo com a Constituição Federal de 1988, que assegura uma série de direitos, não é nada mais que uma obrigação política dos governantes de tornarem concretas medidas de proteção à sociedade em uma situação de calamidade como a que a pandemia instaurou.

Mas como, afinal, assegurar uma condição de vida que garanta a “saúde e o bem-estar”, “alimentação, habitação, cuidados médicos”, e até mesmo “direito à segurança” em diversos casos, incluindo a “perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle” (o  que, definitivamente, parece ser o caso da pandemia…) em meio a esse discurso de austeridade e responsabilidade fiscal, em que os recursos disponíveis para os investimentos públicos são sempre escassos?

Com o avanço da crise, parece ter ganhado fôlego uma discussão sempre adiada: uma profunda e séria reforma tributária que torne nosso sistema de cobrança de impostos mais progressivo, menos regressivo, como é atualmente: o andar de cima, o topo da pirâmide social, paga, proporcionalmente, menos impostos que a maioria da população, a base da pirâmide. É preciso urgentemente inverter essa lógica.

Isso ocorre por uma série de fatores. Dentre esses, o Brasil é um dos poucos países do mundo que não taxa lucros e dividendos, por exemplo. Impostos sobre grandes heranças também  inexistem, paga-se a mesma alíquota independentemente do que for herdado. As grandes fortunas também não são taxadas no país: estima-se que um eventual imposto sobre os bilionários poderia render até R$ 100 bilhões ao ano.

Sobre esse tema, uma consulta pública no site e-Cidadania, do Senado Federal,revelou forte apoio à ideia de criar uma taxação sobre as grandes fortunas no Brasil: nada menos que 329 mil votos favoráveis contra pouco mais de 6 mil votos contrários. Longe de representar qualquer rigor de amostragem estatística confiável ou algo que o valha, esse dado ao menos reflete um retrato instantâneo do ânimo manifestado por meio das redes sociais, nesse contexto muito específico de pandemia, em debater temas dessa natureza, que em condições normais não teriam qualquer destaque, especialmente em um governo de viés autoritário e ultraliberal. É uma discussão que, enfim, ressurge com alguma repercussão entre diversas pessoas que, aturdidas pela tragédia da covid-19, se lembram por qual razão é tão importante lutar pelos Direitos  Humanos, entre os quais o direito à vida, ao bem estar, à dignidade – que só serão alcançadas plenamente em uma sociedade mais equânime, menos injusta, menos desigual, mais solidária.

É preciso reforçar cada vez mais que isso tudo só se materializa quando temos garantidos o acesso a uma saúde pública de qualidade, a uma educação pública de qualidade, que se desenvolva em torno da pesquisa e da produção conhecimento em favor do coletivo, sempre. Assim, torna-se imprescindível repensar a distribuição das riquezas produzidas no nosso país.

* Rogê Carnaval é historiador, professor do ensino fundamental e formador do projeto Respeitar é Preciso!.


Clique e veja a série Respeitar! nos tempos de coronavírus, com reflexões acerca de temas das formações do projeto e que dialogam com o período de isolamento social por causa do coronavírus (Covid-19). 

7 comentários

  1. Raily dos santos sousa em 29 de abril de 2020 às 11:20

    Devido a essa pandemia muitas pessoas saíram tendo muitos prejuízo inclusive pessoas empregadas que a cada dia milhares estão perdendo seus empregos E com isso muitas famílias passando fome e perdendo suas casas de aluguel. e não só os empregados saio no prejuízo os donos também das empresas saíram no prejuízo donos, empresários todos saíram no prejuízo com essa pandemia

  2. Maria Helena Araújo de Lima em 29 de abril de 2020 às 11:36

    Devido a essa pandemia muitas pessoas saíram tendo muitos prejuízo inclusive pessoas empregadas que a cada dia milhares estão perdendo seus empregos E com isso muitas famílias passando fome e perdendo suas casas de aluguel, por não ter mas o dinheiro para poder pagar e, e não só os empregados saiu no prejuízo os donos de empresas , donos de comércios, lojas e etc também saíram no prejuízo com essa pandemia, e não podemos esquecer também dos alunos que também saiu no prejuízo e está na vdd por n está tendo aulas presenciais, principalmente por causa do Enem q está logo aí.

  3. Maria Eduarda Sousa Dias em 29 de abril de 2020 às 12:07

    Bom, a covid-19 é nada mais nada menos uma doença que chega a matar, e as pessoas estão pouco de dando o respeito de se “resguardar” muitos jovens, adultos estão se “relaxando” por muitos dizer que a doença só trará malefícios as pessoas mais idosas, temos vários casos que mostram que não é exatamente assim. Falei um pouco sobre isso porque devemos perceber que em um momento de agonia de tanta lástima devemos nos unir, ajudar uns aos outros, que questão financeira não vem ao caso, precisamos de bom senso isso sim!

  4. Ana Carolina em 29 de abril de 2020 às 12:16

    Com metade da população global em quarentena, a economia mundial interrompida e o número de casos confirmados passando dos milhões, fica claro que a pandemia do Covid-19 se apresenta como a maior crise dos tempos atuais. É preciso reforçar cada vez mais que isso tudo só se materializa quando temos garantidos o acesso a uma saúde pública de qualidade, a uma educação pública de qualidade, que se desenvolva em torno da pesquisa e da produção conhecimento em favor do coletivo, sempre. Assim, torna-se imprescindível repensar a distribuição das riquezas produzidas no nosso país.

  5. Ana Caroline Morais em 29 de abril de 2020 às 14:17

    Ótimo texto, parabéns.

  6. Franciele em 29 de abril de 2020 às 22:46

    Muitas pessoas pensam só no seu próprio umbigo, no seu bem estar, no seu conforto , enquanto pessoas padecem, na fome principalmente, nas faltas de auxílio , nos direitos humanos, e etc. Infelizmente o Brasil é um país egoísta , e com uma administração econômica péssima!!

  7. Hilary Vitória Dos Santos Gomes em 16 de maio de 2020 às 17:59

    Diante dessa pandemia, vale lembrar que estamos vivendo a maior crise dos tempos atuais, infelizmente ainda vemos pessoas desrespeitando o isolamento social, enquanto tem muitas pessoas que não tem um lugar para ficar, nem por tempo determinado, enquanto isso passa, O Brasil é um país egoísta, país onde falta voz autoritária, um país sem uma boa administração, país que não disponibiliza um saúde pública de qualidade, realmente essa situação é lamentável, então fiquem em casa.

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