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Como a escola pode permanecer sendo escola em meio ao caos social? Entrevista com José Sérgio de Carvalho

Por Natália Pesciotta

A pergunta do título é a grande questão para o doutor em Filosofia da Educação José Sérgio Fonseca de Carvalho, quando pensa sobre a agressividade notada atualmente dentro das comunidades escolares. Ele contribuiu com o 3º Grande Encontro de Comissões de Mediação de Conflitos da capital paulista, em junho de 2022, propondo reflexões sobre os sentidos da escola, esse tempo-espaço separado da luta pela vida, em suas palavras, onde deve imperar a linguagem e não a violência nas mediações dos conflitos.

Em entrevista ao portal Respeitar É Preciso!, o professor de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) amplia seus pensamentos sem respostas prontas: “Não é dar uma receita, percebe? Cada um vai ter que pensar como agir para dar o protagonismo ao discurso, e não à violência, dentro da instituição escolar”.

Para ele, o essencial é que a convivência neste espaço propicie uma experiência de “desidentificação” a cada aluno. “A escola significa sempre a possibilidade de eu me libertar de um espaço onde os lugares já estão predeterminados”, afirma.

José Sérgio Fonseca de Carvalho, doutor em Filosofia da Educação (Foto: IEA/USP)

Um ano após a ampliação do retorno à rotina escolar, há uma sensação de aumento da agressividade nas escolas. Como podemos entender esse fenômeno, já que essa convivência havia sido tão aguardada e celebrada?

Me parece inegável que pelo menos essa sensação de uma intensificação da agressividade nas escolas seja inquestionável. O que eu acho importante a gente refletir é que, por vezes, essa sensação é acompanhada por diagnósticos de sua suposta causa. Frequentemente esses diagnósticos apontam para os usuários da escola, as crianças e adolescentes que estão lá, seja vinculando essa agressividade ao seu contexto social, econômico ou familiar… Enfim, como se de alguma forma a agressividade brotasse daqueles indivíduos que frequentam a escola. Se isso fosse verdade, ela teria que ser um fenômeno isolado. E a sensação que eu tenho, como cidadão, vizinho, pai, etc, é o contrário. Vou pegar coisas banais que acontecem ao meu redor e acho que acontecem ao redor de todo mundo hoje: tenho um grupo do whatsapp dos vizinhos onde o menor desentendimento dá origem a conflitos que viram violências verbais graves, de vez em quando. Pensando no trânsito, por exemplo. Eu ando muito de bicicleta. Os conflitos entre motoristas e ciclistas sempre existiram, sempre vão existir, mas o que me parece impressionante, de um tempo para cá, é a quantidade de gritos, de ameaças. Parece que esse é um dado muito generalizado da nossa sociedade, que resvala, ecoa e se manifesta também nas escolas. Nesse sentido, como todo fenômeno social, é muito difícil imputar isso a uma causa única ou conjunto limitado de fatores.

Essa percepção de aumento da violência não estaria, então, apenas relacionado com a pandemia?

Acho que isso tem a ver com múltiplos fatores. Alguns deles talvez ligados à pandemia. Foi um momento para todos nós de muito estresse e insegurança. É normal que “o pavio fique muito curto”, para usar uma expressão. O Brasil fez parte de países em que houve também uma tensão entre pessoas que falavam “a gente tem que se cuidar, fazer isolamento social, tomar vacina” e setores da sociedade que se colocavam frontalmente contra isso. E há também outros fatores. Um clima político do mundo, mas em particular do Brasil, de muita polarização e pouco diálogo. Um tipo de sociedade que funciona a partir de certas bolhas quase incomunicáveis e que entram em conflito. Claro, não podemos esquecer o papel que as mídias sociais têm nisso. O que a gente sabe é que ganham muito dinheiro com os conflitos: quanto mais polêmica criam, mais visualizações, mais dinheiro ganham, então fomentam irresponsavelmente uma sociedade conflituosa e o Brasil talvez seja um dos exemplos de maior sucesso disso. É o caso da gente lembrar daquele que ocupa a presidência da República. Não é um exemplo isolado que ele tenha dito “Precisamos matar 30 mil”. Veja, como é que eu lido com o conflito interno da sociedade brasileira? Como se nós tivéssemos inimigos internos e a única solução fosse a pacificação pelo silêncio: a morte ou o exílio. A gente não pode esquecer também que é uma sociedade marcada pela violência. Às vezes a gente faz uma narrativa acerca do Brasil como um país hospitaleiro, aberto aos estrangeiros. A qual estrangeiro? O Brasil foi o país que mais recebeu pessoas escravizadas do mundo. Que as tratava como coisas. E o genocídio dos povos africanos começa no Brasil no século 16, mas permanece até hoje. Somos uma sociedade muito violenta. E uma parte da sociedade assina embaixo dessa violência.

Então você tem esse caldo de cultura muito complexo: uma sociedade muito violenta, submetida a um estresse muito grande, a partir da pandemia. É claro que isso ecoa dentro da escola. Não quer dizer que a violência nasça na escola, muito menos que os responsáveis por essa violência sejam aqueles jovens. E a minha grande pergunta é: como é possível a escola permanecer sendo escola, em seu sentido profundo, mesmo em meio a esse caos social?

Qual seria esse sentido mais profundo da escola que não pode ser perdido?

Queria fazer algumas ponderações, de maneira muito resumida, do que concebo como sentido da escola. A primeira ponderação é que a criação da escola significa uma ruptura radical com todas as outras formas de educação até então vigentes. Na maior parte das sociedades, os mecanismos de educação são feitos pelo convívio cotidiano. O que essa invenção da escola traz? A mim parece que o próprio uso do termo escola já nos indica algo. É um termo grego – skholé – usado pelos gregos para um tempo que era livre. Tempo livre aqui não significa preguiça, vazio, não fazer nada, mas fundamentalmente um tempo liberado da produção. Liberado da luta pela sobrevivência. Eu lembrava, no nosso encontro, que a pandemia, com fechamento das escolas, fez a gente rever a tristíssima cena de meninos e meninas de 8, 10, 12 anos nos semáforos da cidade lutando pela sua sobrevivência, vendendo balas, chocolates. Não tinham esse tempo que os poupava da luta desigual pela sobrevivência. A instituição desse tempo e espaço escolar, numa sociedade complexa como a nossa, faz referência ao ideal de separar essa criança, esse adolescente, da luta duríssima pela vida, dando a ele um tempo de formação. Crendo, evidentemente, que os conteúdos escolares têm um valor formativo, ou seja, eles não são necessariamente úteis. Há coisas importantíssimas na escola que não têm necessariamente utilidade prática no futuro, como, por exemplo, o estudo da poesia. O jogo de futebol, de voleibol. Os festivais, as festas juninas. A palavra escola também queria dizer adiamento. Essa é uma noção linda. Daqui a pouco eles vão ter que entrar nessa roda difícil da vida. Mas, se puderem ter 12 anos de adiamento, onde tenham garantido um tempo e um espaço de separação da luta pela vida, é importante. 

Na nossa sociedade, quase todos os conflitos têm desembocado muito rapidamente na violência. A escola, como tempo e espaço separado, teria que ser um esforço de suspensão dessa violência vigente para oferecer a estes alunos, aqui, agora, a experiência de um ambiente não marcado pela violência. Veja: impregnado de conflitos, como todos os ambientes o são, mas adotando, como elemento de mediação desse conflito, a palavra. as razões, o debate, a discussão.  

Como isso poderia ser possível, na prática?

Vou pegar um exemplo muito banal que não é uma explicação filosófica, mas uma experiência que vi acontecer com uma professora no CEU Butantã: os alunos voltavam do intervalo e reportavam algum tipo de briga, de agressão física. O que essa professora fazia? Trazia um aluno e pedia para contar o que aconteceu. Depois trazia o outro e pedia para contar o que aconteceu. Aí voltava para o primeiro e perguntava: “Você ouviu o que ele falou? Você tem algo a dizer sobre isso?” E para o outro: “E você, tem algo a dizer?” Às vezes eles se reconciliavam, às vezes não… Não importa. O que importa é o fato de que essa professora, em ato, mostrava para eles o valor da palavra. Ela não julgava quem tinha razão, não dava punição para um ou outro. Ela simplesmente criava uma experiência na qual o protagonismo era ocupado pelo discurso e não pela violência. Eu vi isso e falei: Essa professora sabe o que é a escola. Não é dar uma receita, percebe? Cada um vai ter que pensar como agir para dar o protagonismo ao discurso dentro da instituição escolar. Para mim, isso é de grande importância. Por vezes a gente estabelece para a escola metas e avalia sua relevância por coisas que acontecem lá no futuro. Significa que essa criança amanhã não será violenta? Não sei. A minha questão tem sido: de que forma essa experiência aqui e agora da escola pode romper com a reprodução da violência extraescolar? 

Nesse caso, o contrário dos conflitos não é o silêncio, o silenciamento, mas outra coisa que acontece a partir da convivência. 

Os conflitos são da ordem do inevitável. Viver uns junto aos outros é uma fonte constante de conflito. A grande questão é o que se faz com esse conflito. O conflito nos faz amadurecer, crescer. Nos arrancam do nosso lugar cristalizado, engessado, muitas vezes injusto. Por exemplo: o crescimento do movimento feminista criou um conflito, mas tem um valor positivo quando significa aumento da igualdade. Às vezes um conflito significa ganho para a sociedade. A grande questão de novo é a palavra. Se tem algo que nos caracteriza como humanos, é sermos seres dotados de linguagem. Este é o ponto crucial. Então o que a gente faz na hora do conflito? A gente discute, a gente busca soluções pela linguagem. E o que é o silêncio? O silêncio é a desumanização. É não conseguir conviver com o conflito. Quando prometo matar, é porque não consigo conviver com conflito. 

Apesar das dificuldades, o que acha que podemos ver como positivo na convivência entre estudantes, professores, que não é possível quando está cada um em sua casa tendo aulas online, por exemplo?

A escola significa sempre a possibilidade de eu me libertar de um espaço onde os lugares já estão predeterminados. Seja uma filha caçulinha que é a preferida, um filho mais velho que tem que assumir as responsabilidades… A estrutura familiar é assim. Mas a escola abre a possibilidade de outro tipo de convivência. É um lugar cheio de regras, de hierarquias, mas justificadas pela palavra. O menino tá descendo a escada correndo. Claro que você tem que falar: “Não, para!” Mas tem que explicar: “Para, pois você pode cair”, “Para, pois você pode machucar alguém”. Na família, o pai pode falar: “Porque eu assim quero”. Na igreja, o sacerdote pode dizer: “Porque assim revelaram as sagradas escrituras”. Nas forças armadas, o general simplesmente diz: “Atira, ataca”. E se espera que o soldado obedeça. Essa é a lógica da instituição militar, não da escola. O bom aluno é aquele que levanta a mão e pergunta: “Por quê? Eu não entendi as suas razões”. E o bom professor é aquele que se torna capaz de dominar esse mecanismo de debate das razões. É o sentido da escola. 

A escola não tá ali para simplesmente afirmar a identidade familiar. Ela tá ali para levar os alunos a colocar em questão algo que até então lhes era tido como sagrado, como transcendente. Essa interrogação é a chance que ele tem de desidentificação. Se a escola for uma escola, se comportar como uma escola, se fizer jus à noção de escola, ela será o lugar onde o filho do traficante não é filho do traficante, ele é aluno. Em que, por exemplo, o filho de alguém vinculado à visão ortodoxa de qualquer religião convive e respeita o ateu, ou outra religião. Dentro da casa dele, como vai conviver com outras religiões? A escola é esse espaço. Ele não precisa abdicar de suas convicções, mas entender que o outro também tem convicções caras, e como a gente organiza esse espaço. Isso vale para a elite também. A escola é onde um filho, neto e bisneto de médico pode ter aula de arte e não querer mais ser médico, querer ser artista. A escola é essa chance de mostrar pra gente que nosso passado nos afeta, mas não determina nosso futuro. Nesse sentido ela é emancipadora. Ela te arranca do lugar que é colocado para você como necessário em outras instituições. O trabalho da escola é o trabalho da liberdade.

2 comentários

  1. Amanda Gomes Pinto em 10 de julho de 2022 às 18:38

    Como dizia Anisio Teixeira ” a escola pública é uma indústria de democracia”.

  2. EDVÂNIA PAULO em 31 de julho de 2022 às 18:09

    MEU NOME É EDVÂNIA PAULO, SOU PROFESSORA DE EDF, A DIVERSIDADE POR SI SÓ CAUSA CONFLITOS QUANDO NÃO RESPEITADAS, PORÉM ESSAS DIFERENÇAS NÃO PODEM SER DITADAS QUE UM SEJA MELHOR QUE OUTRO, SOMOS DIFERENTES, E ISSO NÃO NOS DIMINUEM ENQUANTOS SERES HUMANOS, É PRECISO EDUCAR, POIS SOMOS TODOS DEPENDENTES UNS DOS OUTROS, OU SEJA AS DIFRENÇAS COMPLETAM O TODO.

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