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Marcadores sociais da diferença e Educação em Direitos Humanos

30 de agosto de 2023

“Quando falamos de marcadores sociais da diferença, estamos falando da necessidade de se construir um olhar interseccional sobre as desigualdades

Por Jacqueline Moraes Teixeira* e Ana Sanches**

Por que olhar para alguns marcadores sociais da diferença nos ajuda a compreender os desafios que a noção de reconhecimento nos coloca, quando pensamos no compromisso ético de promover uma Educação em Direitos Humanos? 

A primeira coisa que precisamos considerar é que a noção de reconhecimento nos coloca diante do imperativo da diversidade social. Reconhecer é uma ação coletiva, uma chave ética que construímos para nos sentirmos parte de um coletivo, uma espécie de afeto que torna possível o convívio mútuo e a responsabilidade para com a existência de quem não faz parte do nosso círculo familiar de socialização. Se o reconhecimento é algo que nos permite aceitar a diferença, nosso principal desafio consiste em interpelar os processos históricos que silenciam ou impossibilitam aceitar o modo como a diferença atravessa alguns sujeitos.

É por isso que quando se fala sobre educação e diversidade, ou Educação em Direitos Humanos, cada vez mais é abordada a necessidade de se produzir um olhar interseccional entre alguns marcadores sociais da diferença, tais como raça, gênero, sexualidade, classe, geração, território e religião. Mas o que são “marcadores sociais da diferença” e como pensar a intersecção como um dispositivo social importante nos processos de reconhecimento e de construção das identidades sociais?

Os marcadores sociais da diferença são categorias que organizam os indivíduos a partir de alguns aspectos de diferenciação (ZAMBONI, 2014). Tais categorias emergem nas ciências sociais, no contexto dos estudos sobre gênero, sexualidade e raça, durante as décadas de 1980 e 1990, ao se abordar as desigualdades na distribuição de direitos civis essenciais para algumas populações. Assim, quando falamos sobre reconhecimento das desigualdades de condições de trabalho das mulheres, por exemplo, estamos falando de uma desigualdade ancorada no marcador social gênero. Quando falamos do encarceramento em massa de pessoas negras nos Estados Unidos ou no Brasil, estamos falando do marcador social raça. Para além de sinalizar o modo como os sujeitos são entendidos dentro de um registro de diferenças, a noção de marcadores sociais permite pensar no modo como algumas diferenças sociais passam a ser operadas dentro de um regime de desigualdades, diminuindo as condições de existência para alguns enquanto garante melhorias substanciais de existência para outros. 

Se, na década de 1990, usava-se muito a noção de marcadores sociais para pensar alguns problemas e alguns processos de desigualdades do Norte Global, a partir dos anos 2000 a noção de marcadores sociais passa a circular com força no Brasil, primeiramente ligada à noção de categorias em articulação e, em seguida, à noção de interseccionalidade (MOUTINHO, 2014). 

A noção de categorias em articulação, que antecede o conceito de interseccionalidade, e foi usada, sobretudo, para pensar eixos de sujeição e estratégias de resistência, como evidencia Adriana Piscitelli (2008), surge como um cuidado teórico-metodológico comum às análises sobre as desigualdades constitutivas das relações sociais em contextos atravessados pela colonialidade. Grosso modo, trata-se da necessidade de se olhar para os pontos nos quais diferentes relações de poder se entrecruzam. É desse exercício que os marcadores sociais raça, classe e gênero emergem como elementos que precisam ser compreendidos como eixos articulados, tornando impossível que alguém exista reconhecido em apenas um marcador. 

Se a diferença é sempre uma relação, compreender a produção da desigualdade exigirá a capacidade de reconhecer, numa mesma experiência social, a articulação de vários marcadores sociais (COLLINS; BILGE, 2021; MCCLINTOCK, 2010). Dentro desse imaginário de observar as questões sociais a partir da articulação das categorias da diferença, os marcadores sociais gênero, sexualidade, raça, classe e geração foram os primeiros a serem considerados.

Assim, quando estamos falando de marcadores sociais da diferença, estamos falando da necessidade de se construir um olhar interseccional sobre as desigualdades. No livro “Interseccionalidade”, essa afirmação pode ser melhor compreendida, na medida em que somos convidadas a pensar sobre as relações de poder que submetem determinados sujeitos a condições desiguais de vida, num regime de desigualdade baseado nas diferenças de raça, classe e gênero, compreendidas como categorias cruzadas que manifestam-se de forma unificada, afetando, assim, todos os aspectos da convivência em sociedade (COLLINS; BILGE, 2021, p. 16).

Com uma maior circulação do conceito de interseccionalidade, a noção de marcadores sociais da diferença foi atravessada pela noção de eixos de subordinação, deixando mais evidente que falar sobre reconhecimento, intersecção e relação exigiam, sobretudo, um olhar para as teorias do poder (Crenshaw, 2002). Nesse sentido, os principais eixos de subordinação, a saber, raça, gênero e classe passam a ser pensados numa relação mais direta com territorialidades e com a questão colonial, como sugerem os estudos pós-coloniais e decoloniais, abrindo espaço para o pensamento de autoras brasileiras como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e Sueli Carneiro.

Apesar de não usar os conceitos de marcadores sociais da diferença ou interseccionalidade, Gonzalez (1984) já assumia que, para pensar o efeito das desigualdades e a ausência de direitos para as populações negras no Brasil, era preciso cruzar raça, sexismo (gênero) e classe, considerando que o racismo produziu efeitos distintos nos homens e nas mulheres. Beatriz Nascimento (1987), por sua vez, é essencial para pensarmos a importância de considerar o território como um marcador social da diferença. Como historiadora, Nascimento defendia que quilombo era uma categoria interseccional, por simbolizar muito mais que um território, uma forma de resistir aos efeitos produzidos pelo processo segregador do sistema colonial.  Por fim, Sueli Carneiro (2019) traz questões importantes para pensarmos marcadores sociais da diferença ao falar sobre a intersecção entre raça, gênero, território e classe nas disputas por direitos e democracia num país cujo reconhecimento político foi cindido pelas tecnologias de escravização e militarização. Ao discorrer sobre o que considera bases estruturantes do racismo, Carneiro apresenta raça, gênero e classe como marcadores sociais centrais que constituem juntos um dispositivo perverso de desumanização. 

Diante de tudo que foi apresentado aqui, é possível pensar que construir um olhar que dê conta da compreensão dos processos que impedem o reconhecimento de determinados sujeitos sociais nos exigirá reconhecer que um regime de desigualdade se baseia sempre no cruzamento de múltiplos marcadores sociais da diferença. Logo, o respeito às diferenças depende da nossa capacidade de aceitação das pluralidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, Judith. Regulações de gênero. Cadernos Pagu, [S. l.], p. 249–274, 2014.

CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Jandaíra, 2019.

CRENSHAW K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev Estud Fem [Internet]. 2002 Jan;10(1):171–88.

COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. Tradução de Rane Souza. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2021.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS, Brasília, p. 223-244, 1984

MCCLINTOCK, Anne. Couro Imperial: Raça, Gênero e Sexualidade no Embate Colonial. Campinas: Editora Unicamp, 2010.

MOUTINHO, L. Diferenças e desigualdades negociadas: raça, sexualidade e gênero em produções acadêmicas recentes. Cadernos Pagu, [S. l.], v. 42, p. 201–248, 2014.

NASCIMENTO, Beatriz. Introdução ao conceito de Quilombo. 1987. In: Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da destruição. Maria Beatriz Nascimento. Diáspora Africana: Editora filhos da África, 2018

PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Society and Culture, [S. l.], v. 11, n. 2, p. 263–274, 2008.

ZAMBONI, M. Marcadores sociais da diferença. Sociologia: Grandes Temas do Conhecimento, [S. l.], v. 1, p. 14–18, 2014.


* Jacqueline Moraes Teixeira é doutora em Antropologia Social pela a Universidade de São Paulo (USP), onde também obteve o título de mestre. Possui graduação em Ciências Sociais (USP/2008) e graduação em Teologia (Universidade Presbiteriana Mackenzie/2012). É pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), realizando pesquisas na área de gênero, raça, sexualidade e religião. Pesquisadora do Mecila (Maria Sibylla Merian Centre Conviviality-Inequality in Latin America) e pesquisadora colaboradora do ISER (Instituto de Estudos da Religião) e do Numas (Núcleo dos Marcadores Sociais da Diferença) da USP. Além de professora da UnB, atualmente, segue como professora colaboradora na área de Educação e Ciências Sociais: Desigualdades e Diferenças do Programa de Pós Graduação em Educação da USP. É também vice-coordenadora da Comissão de Laicidade e Democracia da ABA e membro do Comitê editorial da Cadernos Pagu.

**Ana Sanches é mulher negra, praiana e de origens periféricas. Atua como ativista na Rede Antirracista Quilombação e em causas sociais, raciais e ambientais nas cidades brasileiras. Atualmente está como assessora de projetos no Instituto Pólis e cursando doutorado no programa de Mudança Social e Participação Política na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP-LESTE), pesquisando sobre questões socioambientais e relações étinico-raciais, com foco em mulheres negras. Possui mestrado em Ciências na linha de Saúde Ambiental pela Faculdade de Saúde Pública da USP e graduação em Turismo. 

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