Katia Cristina Silva Forli Bautheney é professora na Faculdade de Educação da USP. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Psicologia Escolar e Educacional. Foto: Acervo Pessoal

Katia Bautheney: “Podemos munir crianças de ferramentas para lidar com questões emocionais pela via intelectual”

Por Mariana Marques

Especialista em psicologia escolar e educacional chama atenção para o potencial da atuação pedagógica para promover saúde emocional de estudantes no ambiente escolar

Em um contexto de crise da saúde mental que parece se refletir no ambiente escolar, muitas vezes educadoras e educadores sentem-se despreparados para lidar com diferentes sofrimentos psíquicos de estudantes. Diante dessa dificuldade atual, a especialista em psicologia escolar e educacional Katia Bautheney propõe deslocar o foco para o ensino, tarefa própria da educação. Fazer um trabalho socioemocional nas escolas envolve necessariamente um trabalho pedagógico e não psicoterápico”, afirma.

A especialista participou de uma ação do Respeitar é Preciso! sobre saúde emocional no ambiente escolar e concedeu esta entrevista ao portal do projeto para compartilhar seu ponto de vista, ancorado em estudos do psicólogo russo Lev Vygotsky (1896-1934). 

Segundo ela, educadoras/es podem diminuir sua angústia diante das manifestações de sofrimento focando naquilo que é sua tarefa, pois aprendizados dos componentes curriculares oferecem ferramentas para que estudantes lidem com emoções e atribuam sentidos: “Transmitir informações, referências e contextos possibilita ao sujeito ampliar a complexidade da visão dele sobre si mesmo, o outro e o mundo, sem se deslocar da posição de educação”.

Promoção da saúde emocional e ambiente escolar

Manifestações de sofrimento emocional tem se tornado cada vez mais evidentes entre as populações mais jovens. Segundo a Pesquisa Mundial da Infância 2021, o Brasil é o quarto país da América Latina e Caribe que mais apresenta casos de transtornos mentais entre os adolescentes de 10 a 19 anos.

As instituições de ensino são o principal espaço de convívio social das crianças e adolescentes e por vezes se veem não capacitadas para lidar com as demonstrações de adoecimento psíquico cada vez mais presentes entre essa população.

O projeto Respeitar é Preciso! do Instituto Vladimir Herzog desenvolve a Ação Piloto “Acolhimento e Saúde Emocional na perspectiva da Educação em Direitos Humanos”, que busca compreender questões relacionadas à produção social do sofrimento psíquico e  as possibilidades de atuação da escola, enquanto instituição de ensino. 

Como parte da ação, o Respeitar é Preciso! organiza formações pedagógicas e encontros entre gestores educacionais do município de São Paulo e especialistas em psicopedagogia para discutir as principais questões relativas ao tema que se fazem presentes nas escolas e centros de educação.

Katia Bautheney, professora na Faculdade de Educação da USP e especialista em psicologia escolar e educacional, foi consultora da ação com a temática: “A perspectiva vigostkiana de saúde socioemocional e a relação com os conceitos e o ensino na escola”.

Durante sua atuação no projeto, ela se reuniu com profissionais da educação para conectar teoria e prática na elaboração de estratégias para lidar com os desafios que surgem no processo de desenvolvimento intelectual das crianças e adolescentes. Seu arcabouço teórico é baseado nos estudos de Lev Vygotsky, importante pensador e psicólogo que se debruçou sobre o processo de aprendizagem.

Na entrevista abaixo, ela responde algumas das principais dúvidas que surgiram sobre o assunto durante os encontros, propondo possibilidades de agir diante das “dificuldades” de aprendizagem.

Parece haver um aumento das manifestações de sofrimento emocional nas escolas. Como você, profissional da saúde, entende esta problemática?

Eu acho que tem alguns aspectos que indicam um aumento da  percepção do sofrimento psíquico nas escolas. A primeira coisa que é importante destacar é que a escola não é uma instituição destacada do resto da sociedade. É importante não dissociar essa dimensão psíquica da dimensão social, econômica, histórica e cultural. O que vai aparecendo ali na escola é uma manifestação daquilo que tá acontecendo fora dos muros da escola. 

Já era esperado que em tempos pós catástrofes de um caráter tão gigantesco como foi a pandemia exista uma experiência de estresse pós-traumático. Essa sensação de incerteza, de insegurança, de muitas perdas que aconteceram continuam repercutindo nas crianças e adolescentes.

Temos também alguns indicadores relacionados ao sofrimento de crianças e adolescentes que estão relacionados com o uso de tecnologias e das redes sociais. Como essas pessoas que estão na educação básica são nativas, elas estão mais suscetíveis aos efeitos colaterais  do uso e dos abusos desse tipo de dispositivos.

É possível dizer que o sofrimento emocional entre crianças e adolescentes aumentou? 

Não é possível dizer que o sofrimento emocional aumentou, é o nosso olhar que está um pouco mais atento para o sofrimento psíquico que se manifesta nos ambientes escolares. Isso se soma aos problemas dos nossos tempos, como o excesso de pressão por conta das questões econômicas e de produtividade, aumentando muito o nível de ansiedade e de depressão entre os sujeitos de modo geral. As crianças e os adolescentes são bastante afetados pois existe ali uma questão relacionada à própria perspectiva. Perspectiva de futuro, perspectiva de trabalho.

“Muitos docentes se sentem despreparados diante do sofrimento dos estudantes. O que eu costumo posicionar na formação de professores é que eles podem fazer aquilo para o qual eles foram designados: ensinar.”

Você acredita que os profissionais da educação podem contribuir no enfrentamento dessas questões de saúde emocional dentro dos seus campos de atuação? Em um panorama mais amplo, qual o papel da escola diante dessa realidade?

Muitos docentes se sentem despreparados diante do sofrimento dos estudantes. O que eu costumo posicionar na formação de professores é que eles podem fazer aquilo para o qual eles foram designados: ensinar. Diante do cenário macroscópico podemos focar no que é micro: a possibilidade de munir estas crianças de ferramentas para que elas possam lidar com esses elementos emocionais pela via intelectual. Fazer uma operação conceitual é uma forma de lidar com preconceitos e é uma forma de fazer contorno mesmo diante do sofrimento, da dor e da angústia.

Do ponto de vista teórico da psicologia de abordagem mais sócio-histórica os elementos conceituais transmitidos nas diferentes disciplinas funcionam como ferramentas que permitem aos sujeitos dar sentido, fazer conexões e transformar de alguma maneira a realidade, dando um destino para as suas emoções. As escolas precisam sair de uma posição que é extremamente psicologizante, por vezes patologizante, e reafirmar a importância da intencionalidade pedagógica.

Fazer um trabalho socioemocional nas escolas envolve necessariamente um trabalho pedagógico e não psicoterápico. É transmitir informações, referências e contextos para que o sujeito possa ampliar a complexidade da visão dele sobre si mesmo, o outro e sobre o mundo sem se deslocar da posição de educação.

“Fazer um trabalho socioemocional nas escolas envolve necessariamente um trabalho pedagógico e não psicoterápico. É transmitir informações, referências e contextos para que o sujeito possa ampliar a complexidade da visão dele sobre si mesmo, o outro e sobre o mundo sem se deslocar da posição de educação.”

Uma angústia comum compartilhada por profissionais da educação é acompanhar o sofrimento de estudantes com dificuldades de aprendizagem,. Acha que esses profissionais podem fazer algo em relação a isso?

Uma ideia que tenho formulado ao longo do tempo é que é raro um ser humano não se transformar ao ter contato com o ensino. Acho que com pessoas que estão vivendo situações de dificuldade de aprendizado o que nos cabe como especialistas da área de educação é desenvolver estratégias diferenciadas de ensino.

Muitas crianças que são encaminhadas para recuperação pedagógica fazem exatamente os mesmos exercícios que elas têm contato no período regular, só que em maior quantidade. Talvez aquela criança precise de um trabalho diferenciado em relação à compreensão do processo em si. Talvez ela precise ser ensinada com uma outra técnica ou outro recurso. Eu sei que isso é muito trabalhoso, o que pode trazer angústia para os professores. Mas a ideia é tentar estratégias diversificadas de ensino. Acho que em muitas ocasiões ficamos paralisados diante da dificuldade dos alunos, especialmente aqueles que saem do modelo do que é considerado um bom aluno.

“Acho que, com pessoas que estão vivendo situações de dificuldade de aprendizado, o que nos cabe, como especialistas da área de educação, é desenvolver estratégias diferenciadas de ensino.”

Muitas vezes, educadores percebem um/a aluno/a específico na turma como causadores de conflitos e não sabem como lidar com esse/a “aluno/a problema”. Como acha que é possível agir diante desse tipo de situação?

Esse conceito de aluno problema é muito antigo. Ele data do século 19 e curiosamente surge junto com um certo discurso psicométrico que faz um tipo de padronização e escalonamento do que é considerado normal e do que não é, em termos de resultados esperados no que diz respeito ao desenvolvimento. Fazendo uma paridade entre o desenvolvimento intelectual e idade cronológica. Isso começa a se estruturar a partir do século 19 com a psicologia moderna que vai olhar para a criança e pensar como prevenir futuros desvios e problemas.

Ao longo dos séculos 19 e 20 o sujeito anormal, que está fora do que foi padronizado enquanto normal, começou a ser alvo de estigmas negativos. Essa questão discursiva de pensar o anormal como patológico até os dias atuais faz que pensemos que aquele sujeito que está fora daquilo que foi convencionado como mais recorrente tem alguma patologia.

Esse contexto de patologização do desenvolvimento escolar é, ao meu ver, arbitrário e tem uma história de desimplicação com o próprio processo pedagógico.

Pensar a lógica da educação a partir de processos de individualização é acreditar que a responsabilidade pelo aprendizado é do próprio sujeito. E quando isso acontece nós paramos de pensar enquanto instituição e quais podem ser as nossas respostas pedagógicas da escola.

Por vezes a equipe pedagógica possui dificuldade para lidar com determinados conflitos e demonstrações de sofrimento. Como os educadores podem se organizar diante dessas situações difíceis para se apoiarem e criarem novas estratégias?

Acho que o esgotamento acontece quando há múltiplas tentativas de achar respostas não pedagógicas, de querer dar conta de coisas que não cabem ao campo educacional. 

Quando você começa a desenvolver estratégias pedagógicas diversificadas a angústia docente tende a diminuir. Mas veja, essas estratégias pedagógicas precisam ser desenvolvidas em equipe. 

Essas equipes de trabalho são grupos que envolvem os educadores da instituição, não só os professores. Elas incluem as equipes administrativas e técnicas que podem se reunir para pensar estratégias, projetos pedagógicos que vão ser desenvolvidos para determinados alunos. É preciso pensar na prática mesmo, quais são situações práticas que a gente vivencia e quais são ações que a gente pode desenvolver juntos para lidar com elas.

“Acho que o esgotamento acontece quando há múltiplas tentativas de achar respostas não pedagógicas, de querer dar conta de coisas que não cabem ao campo educacional. Quando você começa a desenvolver estratégias pedagógicas diversificadas, a angústia docente tende a diminuir.”

Como foi a experiência de participar da ação do Respeitar é Preciso! sobre cuidado emocional? O que pensa sobre os profissionais da educação estarem se debruçando sobre este tema?

Eu participei do projeto quando ele já estava em movimento e eu senti um enorme engajamento e compromisso por parte da equipe do Instituto Vladimir Herzog e dos educadores da rede pública de São Paulo. E o projeto tem produzido efeitos práticos e ações, ele não fica apenas num plano teórico. 

Acho que a educação é uma arte prática e precisa desse tipo de conexão. Eu tive essa sensação de “Bom, o que vamos fazer com isso que estamos aprendendo?” Essa é uma modalidade de luta que faz jus tanto às questões que alimentam o Instituto Vladimir Herzog quanto uma lógica mais revolucionária à la Paulo Freire.

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