Celebração em homenagem a Mãe Gilda (Marina Silva/Correio da Bahia)

Intolerância contra as religiões de matrizes afro-brasileiras (I)

20 de junho de 2018

Enquanto casos mais graves de violência ganham destaque, ainda sabemos pouco sobre as manifestações mais sutis da intolerância

Em setembro de 1999, a Ialorixá Gildásia dos Santos e Santos, fundadora do Ilê Axé Abassá de Ogum, Terreiro de Candomblé em Salvador (BA), foi capa de um jornal de grande tiragem, pertencente a uma denominação evangélica. A Folha Universal estampou uma foto de Mãe Gilda com uma tarja preta nos olhos e a manchete “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.

Nos meses seguintes à publicação, seu terreiro foi sistematicamente depredado e Mãe Gilda e seu marido sofreram assédio e agressão por parte de adeptos de outras religiões. Em 21 de janeiro de 2000, um dia depois de assinar uma procuração para constituir advogados contra a Igreja responsável pelo jornal, Mãe Gilda faleceu, vítima de um infarto. A morte da Ialorixá, em clara decorrência dos ataques que vinha sofrendo, tornou-se um marco da luta contra o preconceito no Brasil. No Parque do Abaeté, próximo ao bairro em que morava, um busto foi erguido em sua homenagem, tornando-se um ponto de referência ecumênica na região. Em 2007, a lei 11.635 instituiu o 21 de janeiro como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. O dia é celebrado como uma data cívica, inspirando caminhadas plurirreligiosas e eventos oficiais.

No ano passado, nas mesmas semanas em que o Supremo Tribunal Federal debatia o ensino religioso na educação pública, uma onda de ataques a terreiros e praticantes de Candomblé em Nova Iguaçu (RJ) chocou a opinião pública pela sua brutalidade, o que incluiu a filmagem do ataque pelos agressores, amplamente divulgada na grande mídia. As imagens da violência reacenderam o debate sobre a discriminação religiosa no país.

RACISMO RELIGIOSO
Não há propriamente uma tipificação de crime de “intolerância religiosa”, embora obviamente se trate de uma violação ao princípio da liberdade de consciência e crença, presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 18) e incorporados na Constituição brasileira de 1988 (art. 5). Desde 1940, o Código Penal prevê sanção em caso de “crimes contra o sentimento religioso”, o que inclui perturbação ou vilipêndio de cultos e cerimônias (art. 208), sem tratar de nenhuma confissão em especial.

Embora a questão racial seja um aspecto inegável destes crimes, a associação entre a violência contra a religiosidade afro-brasileira e o racismo só recentemente foi ganhando contornos definidos na Lei. Em 1997, a Lei Caó (7.716/89, que institui a tipificação de racismo e prevê punição a crimes de “preconceito de raça ou cor”) foi alterada para abarcar preconceito contra “etnia, religião ou procedência nacional”, deixando evidente o nexo do que muitos qualificam como “racismo religioso”.

O próprio registro de denúncias de “intolerância religiosa” é muito recente. Foi somente em 2010 que o Disque 100 criou a categoria “intolerância religiosa” para inscrever denúncias de violações de Direitos Humanos nestes casos específicos. Seu banco de dados é hoje a maior fonte (federal) de informações sobre este tipo de ocorrência, e desde então o número de notificações vem crescendo, puxado principalmente pela vitimização de praticantes de cultos de matrizes afro-brasileiras.

INTOLERÂNCIA COMO CONFLITO
Um conflito inspirado por “intolerância religiosa”, como qualquer outro, pode assumir diversas formas. Situações de agressão e depredação são mais fáceis de observar e ganham destaque na mídia, mas o assédio e as microviolências sofridas em decorrência da fé de cada um são mais difíceis de notar, às vezes até mesmo por quem as sofre. Casos de “violência dura” são muito menos comuns do que o que podemos classificar como atos de desrespeito, constrangimento e incivilidade. No entanto, sabemos também que estes conflitos não observados podem se manifestar de modo violento.

A escola é um lugar privilegiado para tomarmos consciência destas questões, a começar pelos educadores, que podem não perceber quando impõem suas próprias crenças às crianças e adolescentes e, até por desconhecimento, acabam incentivando atitudes de desrespeito. Por ser um assunto muito delicado, é importante acima de tudo promover o diálogo e relações de confiança entre os adultos da comunidade escolar.

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Quem sabe o exercício de escuta não comece na própria casa? A Equipe do Respeitar é Preciso! convidou um colega do Instituto Vladimir Herzog a dar seu depoimento sobre a sua religião, que até então não conhecíamos. Ouça:

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