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Um vestido, sujeitos ilegais e a impossibilidade de existir: Breves ideias sobre sexualidade e gênero na escola

11 de agosto de 2023

“Diante dessa onda de violência, falar sobre gênero na escola objetiva combater desigualdades e violências, reposicionando explicações biologizantes, naturalizantes e fundamentalistas religiosas.”

Por Luís Fernando de Oliveira Saraiva*

O que você faria se um aluno entrasse na sala de aula com um vestido? No curta-metragem Vestido nuevo, o pequeno Mário aproveita que no carnaval não é necessário usar o uniforme escolar para vestir-se do jeito que gosta. Assim, aparece em sala de aula usando um vestido cor-de-rosa. O silêncio é generalizado, interrompido pela professora: “O que você está fazendo? Você está vestido de menina”. Logo, ele é levado para a diretoria e seu pai, chamado. Ali, seu pai é confrontado pelo diretor: “Por que ele veio vestido de menina?”. Enquanto isso, uma colega de Mário é categórica com ele: “Você não pode se vestir de menina, é ilegal”. Mário está vestido de modo ilegal e, por isso, torna-se também ilegal. Mas de que forma isso acontece?

Na escola, ensinam-se muitas coisas; ensina-se também quem somos, quem devemos ser, como devemos ser. Ensina-se, por exemplo, como meninos e meninas devem ser diferentes – em seus gostos, interesses, comportamentos, habilidades, papéis sociais. Ora, não há nada de natural ou meramente biológico na ideia de que meninos são mais bagunceiros, racionais e afeitos às disciplinas de Exatas, ou de que as meninas são mais tranquilas, frágeis, sensíveis e ligadas às Humanidades; tudo isso também é cotidianamente produzido pela escola. Quer dizer, se meninos preferem azul e as meninas, cor-de-rosa, isso resulta de práticas rotineiras – também escolares – que conferem um ar de “naturalidade” às diferenças – e desigualdades – entre os gêneros. 

Podemos falar, então, que as práticas escolares se dão em uma lógica cisheteronormativa – isto é, que impõe como norma a construção de nossas identidades sexuais e de gênero em consonância com nosso sexo biológico e com aquilo que é socialmente esperado para cada sexo, de forma a nos tornarmos também heterossexuais – e patriarcal –  ou seja, que produz e mantém privilégios a homens cisgêneros heterossexuais. Desse modo, operar nessa lógica significa dizer que a escola está empenhada em garantir que meninos e meninas se tornem homens e mulheres “verdadeiros”, que correspondam às formas hegemônicas de masculinidade e feminilidade, sempre baseadas na cisheteronormatividade. Com isso, os sujeitos e comportamentos que não se enquadram nessa lógica facilmente são tratados como problemas e desvios (Louro, 1997). É por isso que, ao apresentar um comportamento considerado inapropriado para seu gênero, Mário se torna ilegal. No filme, podemos encontrar os efeitos desta ilegalidade: a humilhação por parte dos colegas, o isolamento e a ausência de amigos, a punição por parte da professora, a impossibilidade de aproveitar o carnaval. Parece que ali, na escola, Mário quase não pode existir.

Infelizmente, a experiência de Mário nada tem de ficcional. A Pesquisa nacional sobre o ambiente educacional no Brasil (ABGLBT, 2016) apontou que mais de 60% dos estudantes entrevistados sentem-se inseguros na escola por causa de suas orientações sexuais, e mais de 42% pela maneira como expressam seus gêneros. É comum que evitem usar banheiros e vestiários, assim como frequentar as aulas de educação física. É estarrecedor saber que, em média, 54% das vezes que comentários lgbtfóbicos são proferidos, não há intervenção de profissionais da escola. Não à toa, domina uma percepção de que as medidas tomadas pela equipe escolar não têm eficácia alguma. Dentre os efeitos disso, verifica-se que esses estudantes apresentam um desempenho escolar inferior, maiores índices de evasão escolar e menor senso de pertencimento à escola.

Apesar desses dados alarmantes, tem ganhado força a ideia de que as escolas têm propagado a chamada “ideologia de gênero”, na qual as discussões sobre gênero seriam “ferramenta de dominação”, por considerarem as diferenças entre homens e mulheres como construções culturais e convencionais e negarem aspectos biológicos e naturais. O objetivo da “ideologia de gênero” seria, para aqueles que propagam essa ideia, acabar com as diferenças entre homens e mulheres, erotizar as crianças, autorizar a pedofilia e destruir a família tradicional (Miskolci & Campana, 2017). Diante disso, tem-se tentado impedir que discussões sobre sexualidade e gênero sejam realizadas nas escolas, as quais devem se restringir, dizem eles, unicamente ao âmbito familiar.

Os efeitos disso têm sido mais uma vez nefastos: professores que abordam essas temáticas são perseguidos; aulas de educação sexual são impedidas; violências cotidianas são ocultadas; sujeitos são silenciados e apagados. “Mários” são continuamente produzidos; “Mários”: “sujeitos que não são”, que não podem existir da forma como existem. 

 É importante destacar que falar sobre gênero na escola objetiva combater desigualdades e violências, reposicionando explicações biologizantes, naturalizantes e fundamentalistas religiosas. Mas não apenas isso: o objetivo principal é estabelecer outras formas de vida, rompendo com estereótipos que restringem nossas existências, e instaurar outras formas de nos relacionarmos conosco, com os outros, com o mundo.

Se quisermos de fato universalizar a educação, é urgente garantir acesso e permanência de todo e qualquer menino, menina ou menine nas escolas, e que estas sejam espaços promotores de experiências ricas e transformadoras. Um espaço de garantia de direitos – e de um direito mais do que básico: o de existir.

Referências

ABGLT. Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2015: as experiências de adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais. Curitiba: ABGLT, 2016. 
LOURO, G. L.. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.
MISKOLCI, R. & CAMPANA, M.. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Sociedade e Estado, 32 (03), 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s0102-69922017.3203008. Acesso em: 14 jul. 2023. 
VESTIDO nuevo. Direção: Sergi Pérez. Espanha: Escándalo Films, 2007. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ktCXZg-HxGA. Acesso em: 14 jul. 2023.

*Luís Fernando de Oliveira Saraiva é psicólogo, mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, doutor em Psicologia Social, ambos pelo IP-USP, e Pós-Doutor em Educação, pela FE-USP. Atua como psicoterapeuta e consultor, pesquisando há mais de quinze anos sobre os temas Psicologia Social, Psicologia Escolar, Família e Assistência Social. É organizador dos livros “Família, conservadorismo e contemporaneidade”, “Assistência social e Psicologia: (des)encontros possíveis” e “Clínica e (a)normalidade: interpelações pandêmicas”

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