Professor é o primeiro surdo a defender tese de doutorado na UFPE
10 de março de 2020
Matéria publicada originalmente em Diário de Pernambuco:
Quando era criança, o professor universitário Marcelo Amorim, 38, descobriu que seu processo de aprendizagem teria alguns obstáculos a enfrentar. A barreira da comunicação, entretanto, nunca o impediu de correr atrás dos objetivos. Ontem, Marcelo se tornou o primeiro aluno surdo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) a defender uma tese de doutorado.
Concluindo o curso de pós-graduação em ciência da computação no Centro de Informática (CIn), o professor apresentou trabalho sobre acessibilidade de ambientes virtuais de aprendizagem. A pesquisa foi legitimada por sua própria história de vida na academia, em que precisou quebrar as barreiras do preconceito e da falta de acessibilidade.
Marcelo foi o primeiro aluno surdo a ingressar no programa de pós-graduação, antes mesmo da criação do Núcleo de Acessibilidade (Nace) da UFPE. “A principal barreira sempre foi a falta de acessibilidade. No início da pós-graduação, não tinham outros alunos surdos. Eu precisei explicar quais eram as necessidades de uma pessoa surda, conversar com o reitor. Cheguei a pagar um intérprete particular enquanto a Universidade contratava uma pessoa com toda a burocracia”, comenta o professor, que criou estratégias para continuar os estudos.
“Havia preocupações que fugiam do conteúdo do curso, porque eu tentava resolver para que ter o mesmo acesso ao conhecimento que os outros alunos. Com o tempo, as licitações foram acontecendo e os intérpretes foram contratados. No decorrer do curso, consegui me sentir um aluno. Em alguns momentos os intérpretes eram bolsistas, alunos de graduação, por exemplo, que interpretavam um conteúdo de pós-graduação e isso chegou a ser um impasse. Comecei a ler mais do que acessar discussões com os colegas e professores”, diz.
A tese, que foi defendida com a presença de intérprete de Libras, aprofunda o objetivo estabelecido durante sua formação de mestrado (de 2010 a 2012): facilitar o acesso de estudantes surdos aos ambientes acadêmicos. Durante os 10 anos de carreira acadêmica, Marcelo desenvolveu o aplicativo ProDeaf para um projeto em uma disciplina do curso. A ferramenta facilita a questão linguística e cultural da comunidade surda. Em seguida, o ProDeaf foi vendido para a empresa HandTalk.
Já durante o doutorado, Marcelo desenvolveu o Amadeus, uma interface para alunos com deficiência auditiva na plataforma de Ensino a Distância (EAD) do CIn. Atualmente, é professor do curso de Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nesse novo projeto, criou um guia visual para alunos surtos terem acesso aos ambientes virtuais.
Segundo Marcelo, o recurso auxilia os surdos porque, além do português, os alunos terão explicações em Libras, o que pode facilitar a compreensão dos estudantes, já que considera os aspectos culturais que a Língua Brasileira de Sinais.
Acessibilidade ainda é processo em andamento
Atualmente, a UFPE tem 88 estudantes surdos. A maioria deles (77) estuda no Campus Recife. Através do Núcleo de Acessibilidade (Nace), criado a partir das experiências e necessidades de alunos como Marcelo. A Universidade oferece interpretação nas salas de aula e eventos. Apesar das conquistas, o professor acredita que o ambiente de aprendizado ainda precisa evoluir para garantir o acesso aos alunos com deficiência.
“O momento em que vivemos é delicado, pensando em governo, mas a Universidade e o CIn podem possibilitar essa melhoria. Eu, enquanto professor, posso fazer essa interligação entre as instituições para que a gente possa publicar o Guia Visual e alcançar os nossos objetivos. Tomara que os demais órgãos consigam ver o meio acadêmico e a pesquisa como ela realmente é”, diz.
A professora de Libras do Centro de Educação da UFPE, Silvia Klimsa, considera que o trabalho apresentado por Marcelo servirá de exemplo e incentivo para que pessoas com deficiência possam continuar nas universidades. “Esse trabalho é muito importante e com toda certeza vai contribuir para a comunidade surda. Existe uma barreira linguística por falta de acessibilidade porque Libras é a primeira língua para essas pessoas, então a tese dele é uma mudança de paradigma que quebra muitas barreiras”, comentou.
Para a mãe de Marcelo, a aprovação do doutorado é resultado de uma vida dedicada aos estudos. “É uma realização para nós. Era um sonho dele, mas também meu. Desde pequeno ele sempre foi perseverante, batalhador, enfrentava todas as dificuldades. Ele nunca desistiu dos objetivos e eu nunca desisti dele. É muita emoção”, comenta a dona de casa Rosângela Menezes Amorim, 64.