No-ritmo-do-carnaval

por Celinha Nascimento*

Carnaval, virada cultural, pichações, grafites… temas que foram amplamente discutidos pelos paulistanos nos últimos tempos. Afinal, de quem é a cidade? Qual a história que está por trás desta problemática, e o que não podemos deixar de saber para lutar pelos nosso direitos de cidadãos?

Passado o recesso do fim-de-ano e o mês de janeiro, as ruas da cidade voltam a ser preenchidas pelo trânsito “normal”: nos ônibus, nas calçadas, ao redor das escolas, vemos jovens e adultos se aglomerarem novamente, saindo de suas casas e retomando massivamente os espaços que há pouco víamos vazios durante os feriados.

Há ainda um evento festivo a cumprir antes que o semestre de fato se inaugure – o carnaval. Este, ao contrário das outras festividades de há pouco, é celebrado nas ruas, no espaço público, como que a lembrar da necessidade que temos de ocupá-los. Na capital de São Paulo, nos últimos três anos, o debate sobre a mera aglomeração de pessoas no ambiente urbano tomou a pauta cotidiana. Nestes últimos dias, as polêmicas envolvendo blocos de rua e seus desfiles e ocupações tiveram debates acalorados e nem sempre no mesmo ritmo. De um lado, a gestão oficial da cidade e de outro as gestões cidadãs e sociais da mesma cidade. Como toda discussão sobre “o que pode” e “o que não pode” nos leva hoje a falar sobre direitos, poderíamos aqui refletir sobre um em especial, que vem ganhando destaque (não sem motivos) no debate público: o direito à cidade. A maneira e os contextos em que esta expressão é utilizada pode trazer luz às principais questões em disputa no nosso cotidiano urbano.

A existência contraditória da cidade como um habitat essencialmente humano, capaz de engendrar desde lugares únicos de convivência e criação até situações de extremo conflito e privação, inspirou o surgimento do conceito de direito à cidade, no momento em que a urbanização da humanidade atinge o seu auge e se apresenta como incontornável.

Na segunda metade do século XX, a cidade enquanto tal foi o grande personagem de uma emergência de estudos sociais, mobilizando saberes renovados da História, Geografia, Psicologia, Economia Política, Ecologia, Linguística, Saúde Pública, Pedagogia, Arquitetura etc. Do crescimento descontrolado do consumo de recursos à necessidade de governar a vida coletiva diante da desigualdade de condições (e interesses) dos seus habitantes, o debate sobre os problemas urbanos é também um debate sobre as sociedades que os compõem, onde o que é diagnóstico, governança, projeto e utopia necessariamente se confundem.

Em um ensaio pioneiro, que marca em seu título o aparecimento do termo “Direito à cidade”, o francês Henri Lefebvre reflete, em um olhar filosófico sobre o cotidiano, sobre a “problemática urbana”. Publicado em 1968, dentre as muitas propostas interessantes para a renovação dos estudos urbanísticos que o livro contém, figura uma crítica radical à urbanização moderna, à cidade industrial.

Compreender a cidade como uma realidade mutante e essencialmente social, que não se apresentaria sob um só aspecto, era o primeiro passo para uma prática renovada e emancipadora com relação ao convívio urbano, impedindo assim a predominância de visões “técnicas”, que fazem do espaço urbano um objeto de fria manipulação. Tratava-se de reclamar o direito à vida urbana, transformada, renovada, diante de uma miséria social que mais e mais tornava os habitantes prisioneiros de suas cidades, da qual constantemente tentam “fugir” (por meio do turismo, da nostalgia ou de uma concepção idílica de “campo” e “natureza”). Um direito ligado à noções de dignidade e decência humanas, formulações ligadas a um imaginário emancipador.

Os estudos urbanos produzidos no Brasil esforçaram-se por entender a “realidade brasileira” e suas consequências na formação de nossas metrópoles ao longo do século XX. Resultantes de uma industrialização tardia e extremamente veloz, associada a uma gritante desigualdade social, as maiores cidades do país são marcadas pelos “grandes aglomerados urbanos, que em sua maioria estão localizados em áreas afastadas do centro urbano e são marcados por: significativa extensão territorial e presença de casas inacabadas, com reduzido ambiente construtivo; alta densidade populacional; inexistência de áreas verdes; proximidade de rios ou córregos; falta de ordenamento do sistema viário; restrição de mobilidade urbana, com pouca diversidade e disponibilidade de transporte coletivo, bem como precária infraestrutura viária; baixa oferta de serviços e equipamentos públicos de saúde, educação, lazer, esportes e cultura; altos índices de violência”¹ .

A criação de um Estatuto das Cidades em 2001 regulamentou partes dos artigos relacionados à habitação urbana, definindo instrumentos contra a especulação imobiliária, impôs a criação do Plano Diretor para cidades com acima de 20.000 habitantes, bem como regulamentou a criação do Ministério das Cidades, instituído em 2003. No ano 2000, uma emenda constitucional incluiu o direito à moradia como direito social na Constituição. Seguiram-se outros marcos legais, como a Lei do Fundo Nacional de Habitação do Interesse Social em 2005; a Lei Federal do Saneamento em 2007; e a Lei da Mobilidade Urbana em 2011. Em 2015, é sancionado o Estatuto da Metrópole, fundamentando a importância da gestão integrada nas regiões metropolitanas² .

A despeito dos elogiáveis marcos legais, a realidade do planejamento urbano no Brasil, em confronto com interesses comerciais, financeiros e sociais, ainda está longe do previsto. Se de um lado isso mostra o descaso com a Lei por parte de seus operadores, de outro nos faz lembrar o caráter indeterminado da categoria de direito à cidade. Enquanto uma demanda moral fundada em princípios de justiça, serve como horizonte e aglutinador de diversas demandas que surgem na vida cotidiana. Não se restringe a demandas específicas por moradia, mobilidade, cultura, saneamento. Também incorpora a participação, autonomia decisória, justiça, liberdade, democracia e igualdade. É assim um direito coletivo, e tem sido associado a um Direito Humano enquanto horizonte de transformação.

Com o fim do regime militar, consolidada a abertura democrática e diante de governos federais populares de declarada vocação para a gestão social, a demanda pelo direito à cidade persiste e manifesta seu conteúdo expansivo, como se viu nos protestos de junho de 2013. Ali, questionar as condições de mobilidade urbana abriu um leque enorme de pautas reprimidas. Como um “guarda-chuva” de expectativas relativas à vida cotidiana, a reivindicação do direito à cidade pode apontar para um novo “contrato social” ³. Faz-nos reparar que, no dia-a-dia, este contrato está sendo sempre revisto, aditado, e muitas vezes escamoteado.

¹ INSTITUTO PAULO FREIRE. Cadernos de Formação – Direito à cidade. PMSP, 2015.
² Balanço presente em SAULE JR. “O direito à cidade como centro da nova agenda urbana”. IPEA – Boletim regional, urbano e ambiental, n. 15, jul-dez, 2016.
³ TAVOLARI, p. 105.

O espaço é pequeno para tão importante debate, mas devemos citar a experiência e a luta das Cidades Educadoras. Assim como o Direito à Cidade, no Brasil a ideia de uma Cidade Educadora está em permanente diálogo com o trabalho de diversos autores, entre eles Anísio Teixeira e suas Escolas-Parque, Mario de Andrade e os Parques Infantis, Paulo Freire e a Educação Cidadã e Milton Santos com sua luta incansável pelo Território.. De norte a sul, emergem grupos que se organizam de forma colaborativa, utilizando as novas tecnologias, para requalificar ruas, praças, calçadas, parques, escadarias, pautando e exercendo o direito à cidade como um direito inalienável no século 21.

Perguntar-nos sobre ele é questionar nossas condições de vida coletiva. Uma das maneiras mais antigas de participar da vida coletiva é por meio das festas populares. Uma das maneiras de reinventar a cidade – e observá-la – se faz também durante o carnaval.

Que sejam alegres e politizados dias de festa nas ruas!!

* Celinha Nascimento é mestre em Literatura Brasileira pela USP,  Graduada em Meio Ambiente e Política Social. Há anos coordena, assessora e é articuladora de projetos sociais, literários e ambientais em instituições públicas e privadas. Esteve em sala de aula durante muitos anos e milita sem descanso. Faz parte da equipe de educadores de Educação em Direitos Humanos do Instituto Vladimir Herzog e esteve na equipe que fez a elaboração do material Respeitar é Preciso!. 

4 comentários

  1. Daniele Kowalewski em 20 de fevereiro de 2017 às 13:53

    Excelente texto! Podemos refletir sobre as questões do planejamento e cotidiano urbano a partir de uma das maiores festas do mundo! É necessário conhecermos e atuarmos com as concepções de Direito à Cidade e Cidade Educadora. Recomendo sua leitura!

    • Celinha Nascimento em 7 de março de 2017 às 09:42

      Sim, Dani. Em verdade, todas as festas populares são maneiras de ocupar e entender a cidade, o espaço público. Florestan Fernandes dedicou estudos maravilhosos sobre o tema. Abraços.

  2. Vera Elena Gruenfeld em 25 de fevereiro de 2020 às 07:01

    Querida Celinha,
    Este texto esclarecedor e atual deveriaser lido por todo paulistano. Precisamos muito de contrapontos, omo as festas populares, que possam humanizar esse mundo de concreto.
    Vejo no SESC um desses espaços que parecem um oasis.
    Sou a cada dia mais sua fã pelas reflexões essenciais que promove com tanta doçura.
    Grata,
    Vera Elena Gruenfeld.

    • Respeitar É Preciso! em 27 de fevereiro de 2020 às 14:08

      Obrigada pelo carinho, Vera! 😉

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