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Meio ambiente e Direitos Humanos: a necessidade de uma luta contra o racismo ambiental!

Entender o profundo vínculo entre questões étnico-raciais e degradação ambiental é fundamental para fazer uma crítica efetiva e combater violações de direitos vivenciadas na crise ecológica

Por Ana Sanches*

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As mudanças climáticas, uma das maiores problemáticas da contemporaneidade, já são uma realidade em todo o planeta. Porém, é importante dizer que os impactos dessa crise ecológica não são sentidos de forma igualitária por todas as pessoas. Muitas delas, ao passarem por uma situação de “tragédia” e/ou acidente ambiental, vivenciam também uma série de violações de Direitos Humanos. 

O aumento de temperaturas, as fortes chuvas e fenômenos como o El Niño são algumas das consequências das mudanças climáticas responsáveis por causar migrações forçadas de populações pobres no Brasil e em diversos outros países. Além disso, povos em situação de vulnerabilidade e que não possuem resiliência financeira para se reestruturar perdem familiares, moradias, vínculos sociais, empregos e, muitas vezes, passam a viver em novas áreas de risco em situações de precariedade, sem acesso à água potável, rede de esgoto, energia, alimentos etc.

Por isso, é importante lembrar que o direito ao meio ambiente saudável está previsto no artigo 225 da Constituição de 1988, ainda que constatemos que esse direito é pouco acessado na realidade brasileira quando olhamos para as populações pertencentes aos grupos étnico-raciais mais vulnerabilizados. Ou seja, populações periféricas e povos tradicionais, como indígenas e quilombolas, seja nas cidades, no campo ou nas florestas, são as mais impactadas pela degradação ambiental. Desse modo, precisamos refletir: seria o direito ao meio ambiente saudável um privilégio de poucos?

Seria o direito ao meio ambiente saudável um privilégio de poucos?

Nesse sentido, entender o profundo vínculo entre questões étnico-raciais e degradação ambiental é fundamental para fazer uma crítica efetiva e combater violações de direitos vivenciadas na crise ecológica, violações essas que atingem não só a realidade brasileira, mas todo o globo terrestre. 

Apresento aqui conceitos importantes que podem nos ajudar a refletir sobre o vínculo profundo do racismo e da colonização com a degradação ambiental. Essas ideias são gestadas e fortalecidas no campo ativista e circulam de forma promissora no universo acadêmico, vinculando-se a questões como desigualdade de gênero, de classe e étnico-raciais na contemporaneidade. 

O primeiro conceito é o de racismo ambiental, cunhado pelo reverendo e químico Benjamin Chavis no contexto da luta do movimento negro estadunidense por direitos civis na década de 80., Esse é um marco importante, pois é quando o movimento negro urbano ganha notoriedade internacional ao pautar o meio ambiente e litigar a questão ambiental, após pesquisas e mobilizações realizadas em Warren County, na Carolina do Norte, contra a instalação de um aterro de resíduos tóxicos de PCBs (bifenil-policlorado) no bairro onde morava a população negra, imigrante e pobre. Diante dessa denúncia, percebeu-se que aterros de resíduos tóxicos da região sudeste dos EUA se localizavam justamente em bairros habitados majoritariamente por negros, demonstrando um padrão, fruto do racismo estrutural e institucional que desconsidera a vida das populações racializadas.

Já o surgimento de outro importante conceito, o de justiça ambiental, nasce em 1991, em Washington, na Primeira Conferência Nacional de Lideranças Ambientais de Pessoas de Cor, na qual são consolidados “17 princípios da justiça ambiental”. Cunhado pelo pensador, ativista e sociólogo, Robert Bullard, o conceito propõe uma antítese ao racismo ambiental, ou seja, nenhum grupo de pessoas deve suportar uma parcela desproporcional das consequências negativas da poluição e degradação ambiental. Além disso, propõe também que todas as populações, independentemente do grupo social ou étnico-racial a qual pertençam, devem participar da elaboração, desenvolvimento e aplicação de políticas públicas. 

O conceito de justiça ambiental propõe uma antítese ao racismo ambiental, ou seja, nenhum grupo de pessoas deve suportar uma parcela desproporcional das consequências negativas da poluição e degradação ambiental.

No Brasil, pensadores e ativistas como Ailton Krenak, Beatriz Nascimento, Chico Mendes, Marina Silva, Abdias do Nascimento e Carolina Maria de Jesus já traziam em suas falas e escritas fortes críticas ao modelo de vida predatório e degradante a qual eram e são submetidas as populações negra e indígena nas cidades brasileiras.

As organizações socioambientalistas brasileiras também tiveram papel fundamental no combate às problemáticas socioambientais a partir da década de 1990, abordando recortes de gênero, classe e raça de forma interseccional. A Rede Brasileira por Justiça Ambiental em conjunto com movimentos sociais surge nesse contexto, atuando com outras entidades nos anos 2.000, para combater as injustiças ambientais sofridas pelas populações vulnerabilizadas. A FIOCRUZ traz forte contribuição de caráter denunciativo ao elaborar o Mapa de conflitos: injustiça ambiental e saúde no Brasil, evidenciando dados sobre terra, água, energia e contaminações em territórios em disputa e marginalizados. 

Nos últimos anos, com o agravamento das mudanças climáticas, intelectuais e ativistas têm chamado atenção para as populações mais impactadas pelas tragédias ambientais. O autor caribenho Malcom Ferdinand (2022) aponta em seu livro Uma ecologia decolonial: Pensar a partir do mundo caribenho que a colonização das Américas pode ser referência de racismo ambiental mesmo antes da existência do conceito, sendo, assim, uma problemática inerente aos países colonizados. Por isso, podemos afirmar que o primeiro caso de racismo ambiental no Brasil foi a invasão e colonização dos portugueses, pois este é um marco do genocídio indígena, da exploração da natureza e que também está relacionado à escravidão de pessoas negras no Brasil. 

Podemos afirmar que o primeiro caso de racismo ambiental no Brasil foi a invasão e colonização dos portugueses, pois este é um marco do genocídio indígena, da exploração da natureza e que também está relacionado à escravidão de pessoas negras no Brasil. 

Entender este como um ponto inicial é fundamental para a compreensão dos problemas que vivemos hoje em território brasileiro, bem como sua ligação com os problemas de ordem global, principalmente os do Sul Global, como nos lembra Malcom Ferdinand.

Nesse sentido, olhar para a história de forma crítica é compreender os processos coloniais de inferiorização aos quais foram submetidos os povos considerados como não dignos de direitos e de humanidade. Esses processos, não há dúvida, impactam ainda hoje as populações negras, indígenas e pobres. 

Ao olharmos para as cidades brasileiras é notória a disparidade de infraestrutura, acessos, renda e perfil étnico-racial entre periferias e áreas consideradas nobres. O Mapa da desigualdade de 2022 evidencia alguns desses problemas na cidade de São Paulo, demonstrando como a favela/periferia ainda é desconsiderada e marginalizada nos planejamentos urbanos, sendo, ainda hoje, como nos apontou Carolina Maria de Jesus, o “ quarto de despejo” da sociedade. 

Um estudo do Instituto Pólis, denominado Racismo ambiental e justiça socioambiental nas cidades, analisou dados de três cidades no Brasil, São Paulo (SP), Belém (PA) e Recife (PE), e demonstrou as problemáticas ambientais causadas por um planejamento urbano excludente e seus agravos na vida das populações racializadas e pobres, principalmente de mulheres negras. Enchentes, desmoronamentos, áreas de risco e falta de água e sistema de esgoto são algumas das problemáticas que aparecem com marcadores sociorraciais nos diferentes territórios. 

Enchentes, desmoronamentos, áreas de risco e falta de água e sistema de esgoto são algumas das problemáticas que aparecem com marcadores sociorraciais nos diferentes territórios. 

A mesma desigualdade pode ser vista no estudo Justiça energética nas cidades brasileiras, o qual aponta a questão da pobreza energética – seja relativa à capacidade de pagamento, seja em relação ao acesso – como um problema de ordem racial e de classe nos territórios. Nesse sentido, o grupo Associação de Pesquisa IYALETA – Pesquisa, Ciências e Humanidades faz um importante trabalho sobre as cidades da Amazônia legal urbana, apontando como as populações das cidades do Norte e do Nordeste são impactadas por decisões políticas que não atuam visando uma adaptação climática.

Em 2023, organizações, pesquisadores e coletivos se juntaram para cobrar do poder público ações emergenciais e de longo prazo para uma adaptação climática que considere a questão étnico-racial como central. A Rede por adaptação antirracista lançou uma carta direcionada aos governos, apontando a necessidade de “ações de prevenção, mitigação, preparação, reparação, resposta e recuperação em desastres, com participação das populações mais afetadas, em especial a população negra periférica”. A articulação da rede prevê incidência política e articulações com territórios e populações vulnerabilizadas em nível nacional.

Por fim, é fundamental apontar que o combate às problemáticas socioambientais e ao racismo ambiental deve vir de uma atuação coletiva, organizada e ética, em compromisso com a natureza humana e não humana,  colocando-nos como parte do ecossistema que compõe a vida na terra, e considerando os modos de vida das populações quando falamos de proteção ambiental e meio ambiente. Um desafio que os governos, instituições, organizações e populações precisarão  enfrentar, de forma conjunta nas próximas décadas.

Referências bibliográficas:

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.
BULLARD, R. Enfrentando o racismo ambiental: vozes das bases. Boston: South End Press, 1993.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 2004.
FERDINAND, M. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 

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*Ana Sanches é mulher negra, praiana e de origens periféricas. Atua como ativista na Rede Antirracista Quilombação e em causas sociais, raciais e ambientais nas cidades brasileiras. Atualmente está como assessora de projetos no Instituto Pólis e cursa doutorado no programa de Mudança Social e Participação Política na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP-LESTE), pesquisando sobre questões socioambientais e relações étnico-raciais, com foco em mulheres negras. Possui mestrado em Ciências na linha de Saúde Ambiental, pela Faculdade de Saúde Pública da USP, e graduação em Turismo.

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