Educação em Direitos Humanos cabe nos museus?
18 de maio de 2023
Pensar a articulação entre mediação cultural e Educação em Direitos Humanos é também ampliar a possibilidade de imaginar o que é necessário ser preservado e/ou construído para transformar a sociedade em um lugar mais justo e menos desigual para todas as pessoas
Por Luara Carvalho*
Qual a importância de ampliar o acesso a museus e instituições culturais? Difícil responder a essa pergunta de forma simples, mas podemos desenhar alguns caminhos para esboçar essa resposta. Eduardo Galeano, em O livro dos abraços, nos diz que uma das funções da arte é nos ajudar a olhar. Se fizermos um paralelo com a ideia de Paulo Freire de que “a leitura do mundo precede a leitura das palavras”, podemos pensar nos museus e instituições culturais como guardiãs do patrimônio cultural e histórico de uma sociedade e, portanto, como pontes importantes para ler o mundo e a sociedade na qual estamos inseridos(as).
Na maior parte dos museus e instituições culturais, quem traça essa ponte e ajuda a olhar para o acervo e para as exposições são as equipes educativas, que têm papel fundamental de aproximar os conteúdos do público visitante, por mais diverso que ele seja. Em agosto de 2022, o Conselho Internacional de Museus (ICOM) aprovou uma nova definição de museu, que, entre outras questões, traz a educação como uma de suas atribuições, quando afirma: “Os museus funcionam e comunicam ética, profissionalmente e, com a participação das comunidades, proporcionam experiências diversas para educação, fruição, reflexão e partilha de conhecimento”.
Podemos pensar nos museus e instituições culturais como guardiãs do patrimônio cultural e histórico de uma sociedade e, portanto, como pontes importantes para ler o mundo e a sociedade na qual estamos inseridos(as).
Pensar educação em museus (ou mediação cultural, como também é conhecida) articulada à Educação em Direitos Humanos (EDH) é fundamental para entender que o acesso aos bens culturais e históricos é direito de toda a sociedade. Dessa forma, é importante destacar a dimensão educativa dos museus e instituições culturais, já que é durante o período escolar que a maior parte dos(as) brasileiros(as) têm o primeiro contato com esses espaços, de acordo com uma pesquisa do Instituto Oi Futuro, de 2019. A mesma pesquisa aponta para o fato de que os(as) frequentadores(as) mais assíduos desses espaços são as classes A e B. Isso nos leva a outro importante ponto de reflexão: o acesso ao patrimônio cultural como um direito humano e, portanto, universal, e não apenas como um privilégio das classes mais abastadas.
Se as classes populares não são introduzidas a esses espaços e se a escola é um ponto central para que muitas pessoas tenham o primeiro acesso a museus, podemos entender que, para garantir o acesso à parcela excluída da população, é necessário e extremamente importante que haja políticas públicas capazes de dar suporte às escolas públicas, já que essas, muitas vezes, não têm recursos para promover saídas constantes com as turmas, seja por falta de verbas para meios de transporte, seja pela ausência de equipamentos culturais no próprio território, já que, na cidade de São Paulo, por exemplo, existe uma concentração muito grande de equipamentos culturais em regiões mais centrais e uma incidência menor nas periferias.
Para exemplificar uma política pública que garantiu o acesso de estudantes de escolas públicas a essas instituições, citamos um programa chamado “Cultura é Currículo”, da Fundação de Desenvolvimento da Educação (FDE), da Secretaria Estadual de Educação (SEE), que levou inúmeros(as) estudantes para visitar museus, instituições culturais e cinemas, entre os anos de 2008 e 2014, em diversos municípios do estado de São Paulo. O programa previa ônibus e lanche para as visitações, além de material pedagógico para as escolas.
Embora o acesso de estudantes de escolas públicas durante a vigência desse projeto tenha sido considerável, tanto em quantidade quanto em qualidade, do ponto de vista de quem está dentro das instituições culturais, muitas dificuldades foram encontradas, tais como, os(as) professores(as) não serem avisados com antecedência para onde iriam de modo que pudessem preparar a turma; só uma turma/ônibus por ano/série conseguir sair em cada escola, o que acabava por acarretar critérios subjetivos na escolha de quem “merecia” ou “não merecia” ir aos passeios; e, um bastante comum, os questionamentos dos jovens sobre porque essa tal cultura – dominante – era tão importante para que eles(as) atravessassem a cidade para ter contato com ela já que na sua “quebrada” também se faz cultura.
Um exemplo disso foi quando estudantes do extremo leste da capital paulista foram visitar uma exposição sobre casas populares em um museu da zona oeste de São Paulo. A contradição estava posta, já que o espaço que abrigava a mostra era uma mansão de uma família quatrocentona da cidade de São Paulo. Exposta a contradição, os estudantes disseram que aquele espaço não era representativo do que é uma casa popular.
Esse exemplo é significativo justamente porque coloca em questão a ideia de quais são os patrimônios históricos e culturais preservados, por que, para que e para quem são preservados. Além disso, ele abre margem para entender o que não é preservado e por quê. Notar que os jovens se questionam sobre quais heranças culturais são valorizadas e quais não são, e onde se localizam os espaços de memória oficial é importante para que, quando esses jovens tenham idade para ocupar esses espaços, eles possam também – através de seus corpos, falas e propostas – transformar as narrativas oficiais.
Esse é um movimento recente de mudança e abertura de espaço para narrativas até pouco tempo apagadas adentrarem museus e instituições culturais, fazendo com que a visão sobre as nossas memórias e as heranças culturais se ampliem para além do hegemônico. Dessa forma, pensar a articulação entre mediação cultural e EDH, apoiada por políticas públicas de acesso, mostra dois caminhos: a possibilidade de garantir o acesso aos bens culturais de maneira democrática e ampla para toda a sociedade, criando noção de pertencimento, e a possibilidade de imaginar o que é necessário ser preservado e/ou construído para transformar a sociedade em um lugar mais justo e menos desigual para todas as pessoas.
Referências bibliográficas
BENEVIDES, Maria Victoria. Educação em Direitos Humanos: do que se trata?. Programa Ética e Cidadania. Portal MEC. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Etica/9_benevides.pdf. Acesso em: 27 mar. 2023.
FERREIRA, Angélica Aparecida. Programa Cultura é Currículo. Democracia cultural ou proselitismo?. CELACC – ECA, USP, São Paulo, 2017.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1981.
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2010.
ICOM aprova nova definição de museus. ICOM, São Paulo, 25 ago. 2022. Disponível em: https://www.icom.org.br/?p=2756. Acesso em: 13 jan. 2023.
RODRIGUES, Alex. Classes A e B reúnem 82% dos frequentadores de museus, diz pesquisa. Agência Brasil, 4 jun. 2019, Brasília, DF. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-06/classes-e-b-reunem-82-dos-frequentadores-de-museus-diz-pesquisa. Acesso em: 19 jan. 2023.
SILVA, Cintia Maria da. Mediador Cultural: profissionalização e precarização do trabalho. Dissertação (Mestrado), Instituto de Artes – UNESP, São Paulo, 2017.
*Luara de Carvalho é historiadora, educadora e compõe a equipe de formação do Instituto Vladimir Herzog no projeto Respeitar é Preciso!. Iniciou sua trajetória com educação e em exposições em 2009 e, desde 2015, atua também como educadora em cursinho popular.
Parabéns Luara pelo texto, demonstra que você tem conhecimento do que está falando e fazendo e que é necessário ampliar não só a presença das quebradas em museus e exposições, mas a presença destes nas quebradas.
A educação em Direitos Humanos cabe sim nos museus, é urgente uma reflexão da sociedade que possibilite o acesso a todos, que na escola não seja uma atividade de prêmio e sim uma atividade formativa, que os meios de comunicação incentivem a população a conhecer e se apropriarem desses espaços como um lugar de história e educação.
Muito massa seu texto Luara! Acho que nos encontramos propondo novos educativos e museus.