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Comissão de Mediação de Conflitos no contexto escolar: Experiências em discussão

18 de maio de 2023

Esse conflito específico pode nos mostrar que algumas questões não fazem parte somente da dimensão individual, e, por isso, precisam ser abordadas mais amplamente, considerando o contexto escolar e social

Por Sulamita Jesus de Assunção*

Dois alunos – Léo e Marcos (nomes fictícios) – iniciaram uma briga no portão de uma escola em uma região periférica da zona norte de São Paulo. A mãe de outro aluno, que não participou do conflito, interveio em defesa do aluno que estava sendo coagido – Marcos. A partir disso, a mãe que separa a briga, por morar no bairro há muito tempo e conhecer as famílias dos jovens, vai à casa das mães dos adolescentes para relatar a partir de sua compreensão o que havia ocorrido.

A mãe e o pai de Marcos vão à casa da mãe de Léo para conversar sobre a situação. A família de Marcos entra em conflito com a mãe de Léo. Em seguida, a mãe e o pai de Marcos levam o conflito para a escola, alegando que Léo é um menino perigoso, agressivo e que, frequentemente, briga com outros alunos. Alega, inclusive, que o pai de Léo está preso e eles conhecem essa família “desestruturada” desde crianças. A diretora da escola e uma professora tentam mediar uma conversa, mas os pais de Marcos permanecem muito nervosos e argumentam que a escola defende e protege Léo. Os pais de Marcos ressaltam que, por isso, todos os dias, vão juntos levá-lo para a escola e não deixarão que seu filho frequente os espaços no bairro ou conviva, não apenas com Léo, mas com a maioria dos(as) jovens da região. Marcos é um adolescente tímido e retraído.

Alguns dias passam e novamente Léo e Marcos brigam na escola. Com isso, novamente os pais de Marcos vão à casa da mãe de Léo e acontece uma nova discussão. Léo assiste a tudo e, no momento da discussão, grita: “Vocês são muitos folgados, vão ver só o que eu vou fazer!”. Nesse momento, a família de Marcos aciona a polícia e expõe a sua perspectiva sobre a família de Léo. Nos dias que se seguem, Léo passa a ser vigiado e perseguido pela polícia na escola. Ainda assim, os conflitos não diminuem e Léo aumenta a frequência das provocações e xingamentos direcionados a Marcos e sua família. A diretora recebe novamente os pais de Marcos, que insistem em uma solução da escola para essa questão.A diretora junto aos(às) professores(as), que se dividem entre a defesa de Marcos e Léo, conversam sobre a possibilidade de cuidar do caso junto com a Comissão de Mediação de Conflitos[1]. Acontece um primeiro encontro, no qual as famílias expõem a situação e conseguem conversar sobre o ocorrido. A família de Marcos sugere como solução a expulsão de Léo da escola. A mãe de Léo não reage muito bem e uma nova conversa é marcada. Nas conversas entre equipe, alguns(as) professores(as) demonstram ser favoráveis à expulsão de Léo. Em uma nova e longa conversa de mediação com as famílias e jovens, parece que, de forma bem genuína e franca, eles se emocionam e conseguem se entender, acordando conviver nesse espaço comum. A equipe escolar avalia o desfecho como bem-sucedido e todos se sentem tranquilos em relação aos próximos dias. Contudo, para a surpresa de todos(as), na primeira semana após essa conversa, os jovens novamente começam a brigar e as famílias, do mesmo modo, também seguem em conflito.

O que os direitos humanos têm a ver com as comissões de mediação de conflitos

Sempre que um conflito acontece, é como se olhássemos um iceberg: a ponta do iceberg representa muito bem o que é expresso em um conflito e o que conseguimos enxergar, já a parte submersa demanda um trabalho maior para que possamos visualizar e compreender. Nessa situação, o que podemos compreender como a ponta do iceberg ou o conflito emergente? E o que podemos compreender que está submerso, isto é, qual é o conflito latente dessa situação?

As Comissões de Mediação de Conflitos (CMC’s) não solucionarão todos os conflitos, tampouco o que se pretende com essas conversas de mediação é que todas as pessoas necessariamente fiquem “de bem” ou “se amem”. No entanto, essas perguntas podem ser faróis para nos conduzir a outros importantes questionamentos que contribuam para o entendimento da necessidade das pessoas envolvidas no conflito e que nos façam refletir acerca de como essa situação específica pode contribuir com a escola e a sociedade.

Essa situação revela como conflito emergente a briga entre dois adolescentes e a tentativa de uma das famílias em envolver a escola na solução desse problema. À medida que aprofundamos o caso, percebemos que o que está latente é a necessidade da família de Marcos de afastar o jovem Léo de seu filho, por considerá-lo um menino perigoso e agressivo, cujo pai está preso, o que o leva a fazer parte de uma família “desestruturada”. As famílias constituídas por mãe e pai presentes são, em sua perspectiva, um modelo familiar mais estruturado, logo, superior ou melhor.

Com isso, a conexão entre a necessidade de ambos os lados fica comprometida. Um dos lados se sente superior e, por conseguinte, o outro lado se sente menosprezado e estigmatizado[2]. Há também, por parte de uma das famílias, uma desconfiança em relação ao território e às pessoas que nele habitam, o que contribui para dificultar a dissipação do conflito.

Parece, então, que uma das formas que Léo encontrou para não se sentir tão fragilizado e, ao contrário, ter algum poder diante dessa relação, é insistir em provocações e brigas. Já que os conflitos latentes∕submersos não foram trazidos para a superfície, o que continua aparecendo∕emergente, mesmo após as tentativas de conversa, é a briga entre os dois jovens.

Esse conflito específico pode nos mostrar que algumas questões não fazem parte somente da dimensão individual, e, por isso, precisam ser abordadas mais amplamente, considerando o contexto escolar e social.

Sempre que um conflito acontece, é como se olhássemos um iceberg: a ponta do iceberg representa o que é expresso em um conflito e o que conseguimos enxergar. Já a parte submersa demanda um trabalho maior para que possamos visualizar e compreender.

Compreender o que está submerso∕latente muitas vezes vai exigir que consigamos fazer uma leitura do contexto social que vivemos e de como as desigualdades e estigmas sociais foram construídos. Muitos conflitos que são expressos a partir de pequenas discussões podem mostrar, na realidade, um desrespeito às diferenças e/ou a desumanização de algumas famílias, pessoas e territórios. Tais estigmas não são específicos deste conflito entre as famílias de Léo e Marcos, mas relacionam-se com a organização política e cultural da sociedade em que vivemos. O sistema capitalista, patriarcal, heterossexista[3] e racista estruturou uma política de desigualdades que separa pessoas e territórios em uma lógica hierárquica de superioridade e inferioridade, e, assim, discrimina alguns grupos e territórios.

Existe, ainda, uma concepção do que seria a família “ideal” e “estruturada” e de quais territórios e corpos teriam valor. A discriminação à qual a periferia está sujeita, ou mesmo a desvalorização dos arranjos familiares que não são constituídos por pai e mãe, não é expressa somente pela família de Marcos, já que diz respeito às estruturas sociais em que estamos inseridos(as). Nesse sentido, ainda é preciso que façamos muitos esforços para abandonar algumas concepções enraizadas em nosso sistema e imaginário social, que expõe alguns grupos à violência e à exclusão.

Diante disso, torna-se fundamental a compreensão de que essa situação não é somente sobre Léo, Marcos e suas famílias – não é uma questão individual –, mas, sim, sociopolítica. Ao trazer essa dimensão à consciência de todos – os diretamente envolvidos e os demais integrantes da escola, essa perspectiva contribui para que as Comissões de Mediação de Conflitos possam atuar não como “resolvedoras de conflitos”, mas como espaços potenciais de palavra e aprendizado, na medida em que os conflitos revelam questões que precisam ser abordadas mais clara e amplamente, para que, assim, seja possível repensar a escola, suas práticas e as relações que promove.

Nessa perspectiva, as Comissões de Mediação de Conflito têm um importante papel na disseminação da Educação em Direitos Humanos, já que significam espaços de diálogos fundamentais para a construção de valores como respeito, igualdade, cooperação, justiça, democracia e solidariedade a partir das diferenças.

Notas

[1] Criada pela Lei nº 16.134, em março de 2015, a Comissão de Mediação de Conflitos da Rede Municipal de Ensino é composta por representantes da equipe gestora, de professoras e professores, da equipe de apoio, de familiares ou responsáveis e de estudantes das Unidades Escolares. O principal objetivo das comissões é compreender e atuar nas situações de conflitos e violências que prejudicam o processo educativo, abrindo um espaço de conversa entre as pessoas envolvidas, através da facilitação de integrantes da CMC – que, por sua vez, também fazem parte da comunidade escolar.

[2] Para o autor Erving Goffman, o estigma diz respeito à classificação de um grupo a partir de uma identidade que não condiz com a realidade. O estigma inferioriza determinado grupo em oposição e comparação a outro grupo considerado normal e superior.

[3]Na sociedade patriarcal, prevalecem as relações de poder e domínio dos homens sobre as mulheres. É um sistema social em que homens mantêm o poder primário e são predominantes nas funções de liderança política, autoridade moral, privilégio social e controle das propriedades. O heterossexismo pode ser compreendido como um sistema ideológico e estrutural que nega, patologiza e inferioriza as formas não heterossexuais de comportamento, identidade e afeto.

Referências bibliográficas:

PRANIS, Kay. Círculos de justiça restaurativa e de construção de paz: Guia do facilitador. Escola Superior da Magistratura da AJURIS/ Projeto Justiça para o século 21, 2011.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.

MANUAL PRÁTICO: Curso de introdução à justiça restaurativa para educadores. Ministério público do estado de São Paulo. Disponível em:  http://www.escoladeformacao.sp.gov.br/portais/Portals/84/docs/cursos-concursos/ingresso/supervisor-de-ensino/Manual-Pr%C3%A1tico-de-Justi%C3%A7a-Restaurativa-Minist%C3%A9rio-P%C3%BAblico.pdf. Acesso em: 27 mar. 2023. 

Mediação de conflitos / Ana Lucia Catão (autoria); Maria Paula Zurawski, Crislei Custódio (colaboração); Neide Nogueira (coordenação); Ana Rosa Abreu (direção); Lúcia Brandão (ilustrações). São Paulo, SP: Vlado Educação, 2019. Disponível em: https://respeitarepreciso.org.br/cadernos-respeitar/mediacao-de-conflitos/ Acesso em: 27 mar. 2023.

* Sulamita Jesus de Assunção é mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, e faz parte da equipe de formação do Instituto Vladimir Herzog no projeto Respeitar é Preciso!.

2 comentários

  1. Tânia de Lima em 26 de junho de 2023 às 07:52

    No contexto escolar a mediação de conflitos é essencial no auxílio a empatia, do se colocar no lugar do outro, entender o que levou a determinada situação e a partir daí pensar em ações que possam evitar e amenizar situações de conflito

  2. GILCIEGLES DE ARAUJO DOS SANTOS em 11 de abril de 2024 às 16:47

    Toda situação tem contextos que precisam ser levados em consideração e que fundamentam ações, discursos, ideias e construções sociais e individuais. A CMC, pretende, no entanto, construir uma cultura de paz, onde a cidadania seja respeitada e difundida como direito de todos.

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