Cartografias sociais e EDH: Colocar mais histórias no mapa
18 de maio de 2023
Trata-se de reconhecer e valorizar, sem distinção, as memórias dos diversos povos e de suas vivências nos territórios
Por Carolina Piai Vieira*
Quais histórias são contadas dentro das salas de aula? E nas escolas? Essas histórias valorizam algum(ns) grupo(s) social(is) específico(s)? Se sim, qual ou quais?
Refletir sobre essas perguntas pode ser um pontapé inicial para o desenvolvimento de trabalhos de Educação em Direitos Humanos a partir de cartografias sociais.
Cartografia significa “arte ou ciência de produzir mapas” e “descrição ou tratado sobre mapas”, de acordo com o Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2ª edição, de 2004). Quando observamos mapas, percebemos que algumas características se destacam e podemos notar também o ponto de vista de quem os elaborou: o que seu(ua) autor(a) pretendia mostrar quando elaborou determinado mapa? E o que não queria mostrar?
Essas ideias se relacionam não só com a área da Geografia, mas também com as disciplinas de História, Artes e as demais matérias curriculares. A cartografia também pode ser entendida como uma metodologia de trabalho, e é dessa forma que grupos, como o coletivo Cartografia Negra, atuam na área da educação na cidade de São Paulo.
Esse coletivo se reúne desde 2017 para pesquisar e compartilhar memórias e vivências das populações negras que viviam na região central da cidade de São Paulo até o século XIX. Ao comparar essas memórias com a observação de mapas, fotografias e documentos desse período, podemos perceber as narrativas que foram mais valorizadas por quem montou os mapas, por quem fotografou, por quem escreveu esses documentos e pelas autoridades políticas responsáveis pela administração da cidade.
São Paulo é historicamente associada às memórias de trabalhadores italianos e demais imigrantes, porém, a cidade conta com diversas memórias de povos negros e originários¹. Ainda assim, essas memórias muitas vezes não estão descritas em placas ou representadas através de estátuas, e tampouco são tema das aulas de História e Geografia de estudantes do ensino fundamental e médio das escolas paulistanas.
Essas memórias muitas vezes não estão descritas em placas ou representadas através de estátuas, e tampouco são tema das aulas de História e Geografia de estudantes do ensino fundamental e médio das escolas paulistanas.
Por exemplo, o bairro do Bixiga, cuja história e identidade são comumente associadas aos imigrantes italianos, é também o local onde existiu o quilombo do Saracura. Ali perto, na Ladeira da Memória, acontecia uma vez por semana um leilão de pessoas escravizadas. Além disso, a cidade contava com um pelourinho e uma forca, os quais eram destinados à tortura e execução de pessoas escravizadas. Assim, sua história revela memórias de vivências e criações de povos negros, bem como de sua tortura e execução.
Em caminhadas com grupos pela cidade, histórias como essas são contadas pelo coletivo Cartografia Negra, além disso, são compartilhados mapas, fotos e documentos. Muitas vezes, o coletivo contou com professores da rede pública nessas caminhadas, bem como com estudantes do ensino básico, de graduação e pós-graduação, tanto de instituições públicas quanto privadas. Entre eles, estiveram presentes: um grupo de estudantes da EE Caetano de Campos (por meio de projeto do coletivo Democracia Corinthiana); o Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemática (GEPEm), da Faculdade de Educação da USP, formado, em sua maioria, por professores do ensino básico; e a turma de graduação do curso “Raça, Modernidade e Migração nas Américas”, do Instituto Massachusetts de Tecnologia (MIT). O coletivo Cartografia Negra foi idealizado por Raissa Albano de Oliveira e é composto por ela, Carolina Piai Vieira e Pedro Vinicius Alves.
Dentre projetos, pessoas e coletivos que trilham percursos semelhantes estão: Sampa Negra; coletivo ebó de palavras; Comunidade Cultural Quilombaque; Agência Queixadas; CPDOC Guaianás; Instituto Tebas de Educação e Cultura; União dos Amigos da Capela dos Aflitos; Gê Viana; Jaime Lauriano; Guia Negro; Mobilização Estação Saracura/Vai-Vai; Associação Kalu, em Luanda; Instituto Rio Memória e Ação, no Rio de Janeiro; African Lisbon Tour, em Lisboa; Le Paris Noir, em Paris. Ressalta-se ainda a atuação de museus nesse contexto, tal qual o Museu das Favelas, em São Paulo, e o Instituto Pretos Novos, no Rio de Janeiro.
Esses trabalhos relacionam-se com a Educação em Direitos Humanos na medida em que se fundamentam na importância do respeito à diversidade e no exercício do direito à memória. Levar a Educação em Direitos Humanos para as unidades escolares é propagar a possibilidade de construção de cotidianos mais respeitosos, tanto no que se refere às relações interpessoais quanto aos conteúdos abordados nas falas e apresentações que acontecem nesses espaços. Além disso, trata-se de reconhecer e valorizar, sem distinção, as memórias dos diversos povos e de suas vivências nos territórios.
Levar a Educação em Direitos Humanos para as unidades escolares é propagar a possibilidade de construção de cotidianos mais respeitosos, tanto no que se refere às relações interpessoais quanto aos conteúdos abordados nas falas e apresentações que acontecem nesses espaços.
Nesse mesmo sentido, é possível aplicar a metodologia de cartografia social para qualquer área ou grupo. O relevante nesse processo é buscar entender se os conteúdos de nossas falas e narrativas privilegiam alguns grupos sociais e se respeitam e valorizam de igual modo os diversos grupos que existem em nosso país (ou em qualquer território que se determine). Desse modo, torna-se possível mapear nossas realidades, conhecer registros antigos, criar novos mapas.
¹ Para saber mais, recomendamos os documentários “Orí”, dirigido por Raquel Gerber e narrado por Maria Beatriz Nascimento, e o “Extra do DVD Mil Trutas Mil Tretas”, dirigido por Ice Blue, Mano Brown e Roberto T. Oliveira.
*Carolina Piai Vieira é educadora e pesquisadora do coletivo Cartografia Negra, além de formadora do projeto Respeitar é Preciso!, do Instituto Vladimir Herzog. Graduada em Jornalismo, foi aluna do Núcleo de Artes Afro-brasileiras da USP e atualmente é mestranda em História Social. Trabalhou como educadora no projeto Observatório de Direitos Humanos em Escolas, do Núcleo de Estudos de Violência da USP, e fez parte da equipe de cocuradoria da 13ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo.
Uma atividade que pode ajudar a colocar mais história no mapa e inserir a educação dos direitos humanos dentro da sala de aula de modo natural, é trazer para as crianças as brincadeiras étnico raciais, trazendo a história ou curiosidade de sua origem.
Por exemplo, uma professora pode fazer vários cartazes com mapas (localização), o nome de um pais, a descrição de uma brincadeira e uma curiosidade; o verso do cartaz ser cada um de uma cor, em roda pedir para as crianças escolherem uma cor, ler e explicar a brincadeira, depois mostrar o mapa, e falar a curiosidade que está no cartaz.