respeitar-thumb-site

Afinal, qual o lugar da escola na promoção da saúde emocional?

30 de agosto de 2024

Por Ane Rocha, Crislei Custódio, Hamilton Harley e Neide Nogueira

De fato, à instituição escolar não compete tratamentos individuais de saúde, no entanto os valores que orientam a vida coletiva em seu espaço são de sua competência

.

A escola tem algum papel perante o sofrimento psíquico dos sujeitos que fazem parte de sua comunidade? O que teria uma instituição educativa, e não de saúde, a ver com a promoção da saúde emocional? Temos visto essa discussão ganhar corpo no debate público, a partir de casos dramáticos e sensíveis no contexto escolar, relacionados a situações de discriminação, humilhação e decorrente suicídio de adolescentes. Neste sentido, acreditamos na relevância de nos debruçarmos sobre o conceito da produção social do sofrimento no contexto escolar, que aponta para as possibilidades educativas de enfrentamento a este fenômeno.

Se é verdade que “escola não é clínica psicológica”, como já foi dito por representantes de instituições para se eximir de mudanças culturais necessárias, isto é muito diferente de que a escola não não possa e não precise se implicar na construção de ambientes saudáveis e de enfrentamento a violências

A existência de situações extremas como suicídio, assim como o crescimento de estatísticas de incidência de depressão, ansiedade e outros transtornos mentais nas populações são fatos que ressaltam a urgência do tema do sofrimento psíquico num cenário mundial e nacional, inclusive no universo escolar. Se é verdade que “escola não é clínica psicológica”, como já foi dito por representantes de instituições para se eximir de mudanças culturais necessárias, isto é muito diferente de que a escola não não possa e não precise se implicar na construção de ambientes saudáveis e de enfrentamento a violências. De fato, à instituição escolar não compete tratamentos individuais de saúde, no entanto os valores que orientam a vida coletiva em seu espaço são de sua competência.

Muitos sofrimentos e conflitos ocorridos na escola têm como causa as violações e negações de direitos, que eclodem na forma de discriminações e violências

Há uma visão retrógrada que, historicamente, toma as instituições educacionais como responsáveis por identificar comportamentos desviantes e alunos/as-problema para, posteriormente, encaminhar aos setores de saúde, que se ocuparão de diagnosticar e, muitas vezes, medicalizar os indivíduos “atípicos”. Tal perspectiva ultrapassada ignora uma necessária abordagem de caráter social, cultural e histórico, atravessada pela complexidade da vida coletiva e do convívio, que se relaciona sim à função educativa exercida pela instituição escolar.

Uma pesquisa investigativa sobre o tema atualmente conduzida pelo Instituto Vladimir Herzog com gestores/as escolares e educacionais em São Paulo, envolvendo escuta de estudantes, suas famílias, funcionários/as e professores/as, além de aprofundamento com consultoria de especialistas, evidencia que muitos sofrimentos e conflitos ocorridos na escola têm como causa as violações e negações de direitos, que eclodem na forma de discriminações e violências. Portanto, são desafios educacionais já postos, tanto o reconhecimento e a nomeação dessas violações, bem como a promoção de seu enfrentamento.

O que é possível a escola fazer para que essas violações não aconteçam em seu universo institucional? O que precisa ser modificado para que a própria escola não as reproduza?

No curso do desenvolvimento da ação citada, ainda em caráter piloto, foi possível chegar, junto a gestores/as educacionais e escolares, a algumas perguntas das quais não se pode desviar: O que é possível a escola fazer para que essas violações não aconteçam em seu universo institucional? O que precisa ser modificado para que a própria escola não as reproduza?

Parte considerável da literatura em psicologia e ciências sociais tem fundamentado as correlações entre diferentes fatores, opressões sociais e certa crise de saúde mental de escala global. Para além da investigação de causas bioquímicas e dos aspectos patológicos que possam incidir no desenvolvimento de transtornos mentais, há um esforço de se compreender o sofrimento psíquico como decorrência também de uma produção social. Tal compreensão é fundamental para se pensar sobre a perspectiva educacional da abordagem do problema.

A escola precisa se reconhecer como um tempo e espaço capaz de vincular sujeitos e produzir pertencimento através do conhecimento, da história, da vida coletiva, das relações sociais e do território

Assim, o papel da educação envolve rever permanentemente ações, currículos, organização e funcionamento das instituições de ensino, com vistas à identificação da presença ou não dos valores da educação em direitos humanos nas práticas e, portanto, a promoção de transformações culturais. Sendo lócus da socialização secundária de crianças e adolescentes e uma das principais instituições responsáveis pelo enraizamento na cultura, a escola precisa se reconhecer como um tempo e espaço capaz de vincular sujeitos e produzir pertencimento através do conhecimento, da história, da vida coletiva, das relações sociais e do território.

Vale ressaltar que, em nossa pesquisa-ação, fica claro o anseio comum de diferentes atores da comunidade escolar – docentes, funcionários/as de apoio, gestores/as, estudantes – por encontrar na escola um local de pertencimento e acolhimento até mesmo para a efetivação do ensino e da aprendizagem. Outro destaque importante é que o acolhimento e as práticas pautadas pelos valores dos direitos humanos são essenciais para o desenvolvimento de todos os indivíduos que se relacionam na escola, não apenas daqueles que manifestam algum tipo de sofrimento. Como explicitado no artigo “Sentimento de pertencimento e desenvolvimento da moralidade na escola” (Archangelo; Luz; Campanaro; Rodrigues, 2021), a “experiência de estar com o outro, de sentir-se cuidado por alguém e de sentir-se parte de uma unidade para além de si mesmo é fundamental para que o desenvolvimento e que a concretização do propósito educativo” de fato ocorra.

.

Ane Rocha
Antropóloga, mestre em Antropologia Social e supervisora do projeto Respeitar é Preciso!

.

Crislei Custódio
Pedagoga, doutora em Educação e coordenadora educacional do Instituto Vladimir Herzog

.

Hamilton Harley
Pedagogo, doutor em Educação e coordenador executivo de Educação no Instituto Vladimir Herzog

.

Neide Nogueira
Socióloga, mestre em Educação e coordenadora educacional no Instituto Vladimir Herzog

.

Este artigo foi originalmente publicado na revista Carta Capital, para conferir, acesse o link.

Deixe um Comentário