31 de julho de 2023
A Educação em Direitos Humanos não é apenas um conteúdo a ser ensinado, mas um processo a ser vivido no cotidiano da instituição
Por Luciana Alves*
Embora alguns direitos de que gozamos pareçam tácitos, como se sempre tivessem sido garantidos a todas as pessoas, grande parte deles é fruto de conquistas relativamente recentes. Foi preciso que o mundo presenciasse o horror da Segunda Guerra Mundial para que uma mobilização massiva em torno de princípios de cidadania e humanidade mundialmente válidos se tornasse realidade, independentemente da nacionalidade, da raça, do sexo ou de outras características sociais dos sujeitos.
Essa gama de princípios foi expressa na Declaração Universal dos Direitos Humanos, instrumento jurídico de abrangência mundial, que, como o próprio nome sugere, agrega um conjunto de direitos básicos a serem observados em todas as sociedades do mundo, sendo a sua garantia um dever do Estado e um direito de todos os cidadãos e cidadãs.
Em episódios recentes de nossa história, temos presenciado questionamentos aos Direitos Humanos por parte de grupos politicamente organizados que reivindicam para si a prerrogativa de definir a quem tais direitos devem se aplicar, condicionando seu gozo a determinados valores sociais, como a honestidade. Esses questionamentos se expressam em jargões como “direitos humanos para humanos direitos” e revelam profunda ignorância sobre o processo histórico de definição dos Direitos Humanos, bem como a absoluta arrogância que se traduz na tentativa de sobrepor opiniões individuais ou de pequenos grupos ao processo coletivo transnacional que precedeu a declaração universal ora discutida.
Foi justamente para evitar que julgamentos feitos a partir de referências de mundo específicas determinassem quem tem ou não direitos sociais básicos que uma declaração universal, negociada e consentida por representações nacionais legítimas, fez-se necessária. Do contrário, nazistas poderiam continuar a impor um regime político que tratava judeus como não humanos; escravistas poderiam continuar a lucrar com o trabalho compulsório de grupos inferiorizados por eles; e homens poderiam ter poder absoluto sobre as mulheres, justificando tal poder em função das diferenças de força física, por exemplo. Isso só para citar alguns contextos e episódios nos quais alguns humanos, notadamente homens brancos com condições socioeconômicas privilegiadas, reivindicaram para si a cobertura de todos os direitos, impondo aos Outros a condição oposta.
É no contexto desses questionamentos que mais se faz necessária a Educação em Direitos Humanos (EDH). Esse projeto, cujo intuito é reforçar os princípios de universalidade, indivisibilidade e inalienação dos Direitos Humanos, ensina aos e às estudantes da educação básica e ensino superior que não é possível, tampouco desejável, garantir apenas alguns direitos e outros não, assim como não é permitido que um indivíduo abra mão de seus direitos.¹
A Educação em Direitos Humanos é regida por Diretrizes Nacionais promulgadas pelo Conselho Nacional de Educação e engloba questões:
[…] concernentes aos campos da educação formal, à escola, aos procedimentos pedagógicos, às agendas e instrumentos que possibilitem uma ação pedagógica conscientizadora e libertadora, voltada para o respeito e valorização da diversidade, aos conceitos de sustentabilidade e de formação da cidadania ativa. (Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos)
A observância das Diretrizes implica considerar como princípios a dignidade humana, a laicidade do Estado e da escola, a democracia, a interdisciplinaridade, a sustentabilidade socioambiental, a igualdade de direitos ao lado da valorização da diversidade e da diferença. É importante lembrar que o contrário da igualdade não é a diferença, mas as desigualdades, estas sim devem ser veementemente combatidas.
Consideramos que um projeto de escola alinhado a esses princípios tem como eixo as relações que se estabelecem na instituição. Tais relações perpassam:
i) as interações entre diferentes atores do processo educativo: educadores(as), estudantes e seus familiares, além da comunidade do entorno da escola, e devem objetivar dignidade e respeito.
ii) as relações com conteúdos de aprendizagem que envolvam a compreensão de processos sociohistóricos responsáveis pela construção de desigualdades sociais, aqueles que dão origem a preconceitos, discriminações e/ou à negação de direitos de toda ordem. O estudo desses conteúdos pode ensejar a construção de projetos de vida e de sociedade alinhados ao bem-estar e desenvolvimento coletivos.
iii) por fim, as relações com o que se aprende, as quais se verificam, sobretudo, pela apropriação por parte de estudantes de conhecimentos construídos pela humanidade, de modo que a aprendizagem seja a expressão máxima que concretiza o direito à educação, preconizado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Como é possível antever, considerar esses três eixos relacionais vai além de propor atividades pontuais, projetos didáticos esporádicos ou mesmo outras modalidades organizativas de conteúdos, como as sequências didáticas que abordem o tema Direitos Humanos. Trata-se da adoção de uma perspectiva que abranja todo o cotidiano da escola, permeando seus tempos e espaços para além da sala de aula, de modo que a instituição se configure como um ambiente de respeito, valorização e promoção de uma cultura de Direitos Humanos. As aulas em si podem e devem pautar atividades especificamente voltadas à discussão dos princípios e diretrizes que regem os DH, mas é necessário atentar para a superação da distância entre o que se fala e o que se vive na instituição escolar quando o tema são nossos direitos de cidadania universalmente preconizados.
“É necessário atentar para a superação da distância entre o que se fala e o que se vive na instituição escolar quando o tema são nossos direitos de cidadania universalmente preconizados”
Obviamente, não se trata de um projeto de fácil consecução. Seu sucesso depende da apropriação pelos educadores da discussão contemplada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como do alinhamento ideológico de todos(as) os(as) educadores(as) aos pressupostos e princípios que regem a Declaração. É impossível implementar a EDH e questionar sua validade ao mesmo tempo. Assim, tal alinhamento demanda uma mirada à subjetividade dos(as) educadores(as), especialmente dos(as) docentes, principais responsáveis pela liderança dos processos de ensino e aprendizagem, pois a EDH não é apenas um conteúdo a ser ensinado, mas um processo a ser vivido no cotidiano da instituição.
Isso posto, resta-nos uma pergunta e um convite a educadores(as), de modo geral, e a professores(as), em particular: você se considera um(a) agente promotor(a) dos Direitos Humanos em sua vida pessoal e profissional? Convidamo-lo(a) a educar-se continuamente nesse tema para que a resposta a essa pergunta seja sempre um sonoro SIM!
[¹] Por essa razão, representantes do Estado intervêm quando alguém tenta suicídio, abrindo mão do direito à vida, por exemplo.
*Luciana Alves possui graduação em Pedagogia (2005) e mestrado (2010), ambos pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente cursa doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autora do livro “Ser Branco”, publicado em 2013 pela editora HUCITEC, de capítulo do livro “Diferenças e Desigualdades na Escola”, publicado em 2012 pela Editora Papirus, e de artigos publicados em periódicos científicos. Exerce a função de Pró-reitora Adjunta de Assuntos Estudantis e Políticas Afirmativas na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e de consultora em Educação para as relações étnico-raciais.
Gratidão pelo exposto neste artigo. Muito a se pensar e implementar na educação de bebês e crianças, adolescentes, jovens a adultos! Que possamos unir esforços em prol de nossos educandos!