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Olhar até onde o sonhar alcança: Saúde emocional e Direitos Humanos

“Ambientes de cuidado e ambientes educadores são semeadores do sonhar, e, portanto, de saúde.”

Por Fê Lopes*

“Parei de beber porque preciso entender matemática!”

Foi com essa correlação nada lógica, porém absolutamente certeira, que um adolescente me explicou a diferença que ter a entrada na faculdade como sonho possível fez em sua vida – imprimiu “cor, graça e sentido”.¹

Sentido é arco e é também flecha apontada na direção do sonhar. E a saúde, emocional e física, dito do jeito mais bonito e exato que conheço, é sonho. É a capacidade de imaginar destinos possíveis e poder construir caminhos até lá.²

Sonhar é movimento criador de perspectivas, e ter perspectivas em um país repleto de desigualdades sociais é algo complexo de se promover. Se lutar para garantir a subsistência do hoje é algo vital, as perspectivas de futuro tornam-se limitadas. Para o horizonte se alargar diante de nossos olhos, é necessário que não estejamos ocupados em garantir a manutenção da vida: comer, morar, trabalhar, dormir aquecidos, ter nossas crenças e valores respeitados, amar e ser amado por quem desejarmos, entre outros direitos humanos que permitem que os olhos se direcionem para o sonhar, e não estejam exclusivamente voltados para o sobreviver – hoje, amanhã nem sei.

Saúde, emocional e física, dito do jeito mais bonito e exato que conheço, é sonho. É a capacidade de imaginar destinos possíveis e poder construir caminho até lá.

Como garantir que tenhamos, ao mesmo tempo, os pés fincados no que precisa ser feito hoje, e os olhos voltados para a construção de novos mundos? 

Como dito antes, é necessário ambientes – casa, escola, espaços familiares e espaços públicos, em geral – com direitos assegurados e que assegurem esses direitos. Para que os direitos sejam assegurados em qualquer que seja o espaço, o cuidado é um dos principais nortes.  Cuidado enquanto “ambiente” que fornece sustentação para a ousadia de ir mais longe, mesmo diante do medo – inclusive antes mesmo de dar medo, cuidado enquanto um ambiente que apresente o “mais longe” como possibilidade. Esse cuidado se faz de diversas formas, entre elas, através da transmissão do conhecimento acumulado por gerações, do fazer brotar a curiosidade e a vontade de aprender. Ambientes de cuidado e ambientes educadores são semeadores do sonhar e, portanto, de saúde.

Não podemos perder de vista, entretanto, que, ao agigantar o horizonte, as possibilidades de caminho podem se alargar muito a ponto de assustar, paralisar e até fazer adoecer. Aí é que entra Santiago Kovdaloff, personagem do conto de Galeano, que, por já ter visto o mar, pode ajudar Diego a ver a imensidão azul que tingia tudo para onde o menino, pela primeira vez, olhava.³ Ainda que não esteja na Constituição – certamente deveria estar – é um direito humano ter alguns Santiagos Kovdaloffs capazes de ajudar meninos, meninas e menines a ver, e que segurem suas mãos quando sentirem medo de se afogar. Além disso, que estejam lá para mostrar referências de quem viu semelhante paisagem e ainda se aventurou no mar. E não basta mostrar qualquer pessoa nadadora, mas alguém com quem Diego(s) possa(m) se identificar através da imagem semelhante, e, assim, ver(em) refletido um futuro em que há lugar para si no mar das possibilidades.

O ato de se ver refletido gera identificação, componente imprescindível para a saúde emocional, porque nos traz a sensação de que esse mundo imenso diante de nós, recém-descoberto, também é nosso, também nos cabe. Pertencimento imprime cor, graça e sentido de estar inserido. E não estar sozinho é saber que o sonhar é terra povoada de gentes. Assim, quanto mais pudermos ver a maior diversidade possível de existências e lugares, maior será o sonhar⁴ enquanto terra e não apenas ato, e enquanto projeto coletivo, não apenas individual. E sendo o sonhar uma terra, poderemos povoá-la de gentes, caminhos e vidas, que, como disse o Krenak⁴, não é útil, mas precisa de laço e sentido – criado, construído, não imposto ou vendido via delivery

Sendo o sonhar uma terra, poderemos povoá-la de gentes, caminhos e vidas, que, como disse o Krenak⁴, não é útil, mas precisa de laço e sentido – criado, construído, não imposto ou vendido via delivery. 

Ao refletirmos sobre o sentido de não utilidade da vida, nesse caminho que não é reto e nem rápido em direção ao sonhar, é necessário que cada caminhante se implique com a passada – a do grupo e a sua própria – e com a escolha de para onde deseja ir. O objetivo pode ser passar no vestibular – não dá para aprender equações de segundo grau se todas as manhãs forem de ressaca –, pode ser criar vínculo com os alunos que não vieram exatamente como sonhado nos manuais, e chegam, quando chegam, aos pedaços, fazendo estilhaços nas aulas possíveis, tão diferentes das sonhadas. Se saúde é sonho e se educar é construção do sonhar enquanto lugar de vida, fazer essa travessia com tantos percalços é quase jornada heroica.

Para essa travessia não ser solitária, é necessário outros Santiagos Kovdaloffs educadores, que segurem nossas mãos e nos ajudem a ver que alunos não sonhados são atravessados pelas contingências de classe, raça e gênero, as quais são ceifadoras de perspectivas, produtoras de doenças do corpo e da alma. Santiagos Kovdaloffs que ajudem a ver tudo isso nessas mãos-alunas não sonhadas, mas que também alarguem o horizonte e nos ajudem a criar laços e ver nesses alunos não sonhados faíscas potentes. É preciso que as nossas mãos, que tentam sustentar mãos não sonhadas e pouco sonhadoras, sejam sustentadas por outras mãos educadoras que tentam nos dar amparo e mais ferramentas. Assim, são necessárias outras muitas mãos – e, sobretudo, vozes – que cobrem das mãos “canetadoras”, “assinadoras” dos decretos que garantem direitos que sustentam a vida, que tudo que se escreve seja posto em ato, em movimento para dar movimento à vida, não hoje, mas ontem! E assim o sonhar pode se sedimentar enquanto território, construído no desejo de ensinar, de fazer brotar desejo de aprender, e de assim produzir sonhar/saúde em forma de futuros e presentes – repletos de cor, graça e sentido para todos.

Referências

¹ANDRADE, Carlos Drummond de. “Amor”. In. Amar se aprende amando. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
²Milionário do Sonho, Emicida e Elisa Lucinda
³“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: – Me ajuda a olhar!”. GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2005.
⁴ Referência inspirada no livro Sandman, de Neil Gaiman
⁴ A vida não é útil, título do livro de Ailton Krenak

* Fernanda Lopes Sanchez Derballe, Fê Lopes, é psicóloga e psicanalista.

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