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Por Rogê Carnaval*

“Como se distribuem, na cidade, as pessoas, segundo as classes e os níveis de renda? Quais as consequências da marginalização e da segregação? Quais os problemas da habitação e da mobilidade, da educação e da saúde, do lazer e da seguridade social?

Como definir os lugares sociais na cidade, o centro e a periferia, a deterioração crescente das condições de existência?  […]

A cidade, onde tantas necessidades emergentes não podem ter resposta, está desse modo fadada a ser tanto o teatro de conflitos crescentes como o lugar geográfico e político da possibilidade de soluções.”

SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993. p. 10/11

Nesse começo de 2020, o Projeto Respeitar é Preciso! colocou no ar a campanha “o direito à cidade”, em que tantas, e tão importantes discussões se tornam possíveis, e necessárias, especialmente em um tempo de profundos retrocessos como o que vivemos. Retrocessos em muitos âmbitos, mas especialmente nos direitos historicamente conquistados por tantos e tão diferentes movimentos sociais mundo afora, que à duras penas têm conseguido trazer pautas importantes, propor novos olhares, novas posturas e incorporar novos direitos. E há sempre mais direitos à conquistar, porque sempre haverá grupos invisibilizados que podem vir a se organizar e reivindicar. 

Pensemos num exemplo bastante simples. Em pleno ano de 1988, Jânio Quadros, então prefeito de São Paulo, a maior metrópole brasileira, proibiu que as pessoas usassem skate pelas ruas e parques da cidade. Crianças e adolescentes que fossem apanhados andando de skate seriam, inclusive, levados para o juizado. Na gestão seguinte, a prefeita Luiza Erundina não só liberou o uso do equipamento, como deu início a construção de pistas adequadas para a prática dessa modalidade esportiva. Hoje, o Brasil tem alguns dos maiores expoentes do skate, reconhecidos mundialmente por seu talento. Certamente não seriam se não tivessem tido o direito de praticar um esporte, como qualquer outro. 

Como não poderia deixar de ser, para essa campanha o Respeitar! elaborou uma lista de filmes imprescindíveis para refletirmos sobre o direito à cidade, em múltiplos sentidos. São curtas e longa-metragens, documentários e filmes ficcionais, enfim, uma boa variedade de obras, com algo em comum: a sensibilidade do olhar de quem vive, olha, sente e pensa a cidade em toda sua intensidade, em todas as suas contradições e pulsações, esse verdadeiro “ teatro dos conflitos”, mas também “o lugar das possibilidades de soluções”.


O menino e o mundo
Direção: Alê Abreu
Brasil, 2013, 85 min

Indicado ao Oscar 2016 como melhor animação, O menino e o mundo é um filme absolutamente delicado e de rara beleza estética, sobre um menino que parte de uma pequena cidade em busca de seu pai, que fora trabalhar em uma grande cidade, em busca de melhores condições de vida. Em seu caminho, o menino se depara com diferentes lugares, no campo e na cidade, dos mais ricos aos mais pauperizados, numa saga absolutamente comovente. O filme se destaca pelos traços simples e ao mesmo tempo sofisticados da animação, além de uma impressionante paleta de cores, que o tornam uma experiência absolutamente única para quem assiste. Mas o filme não é apenas esteticamente impecável: ao tratar da temática do direito à cidade de uma forma bastante contundente, o filme se mostra um instrumento de crítica poderoso. Imperdível!


Ilha das Flores
Direção: Jorge Furtado
Brasil, 1989, 13 min

Talvez um dos mais conhecidos curtas-metragens de todos os tempos, Ilha das Flores ajudou a consagrar seu diretor, Jorge Furtado, como um dos melhores de sua geração. Antes de produzir bons longas metragens, Furtado levou o cinema gaúcho a um novo patamar de reconhecimento, pela crítica e pelo público, por meio de curtas-metragens como Barbosa e o irretocável O dia em que Dorival encarou o guarda. Possivelmente um dos produtos audiovisuais mais utilizado em sala de aula, o curta se passa em um lixão na região metropolitana de Porto Alegre, e de maneira didática, narra o percurso do alimento desde o momento em que é colhido até chegar no lixão, expondo de maneira brilhante as imensas desigualdades sociais e as contradições da vida urbana, que afinal é uma das mais tristes marcas da sociedade brasileira. 


Linha de passe
Direção: Walter Salles e Daniela Thomas
Brasil, 2008, 113 min

Uma das duplas mais bem sucedidas da história do cinema nacional, Walter Salles e Daniela Thomas assinam alguns dos mais belos filmes de todos os tempos. É o caso de Central do Brasil, Terra Estrangeira e Diários de Motocicleta, obras absolutamente consagradas pelo público e pela crítica especializada.

E com Linha de passe não foi diferente. O filme foi a estreia de Sandra Corveloni na tela grande, e sua atuação brilhante e intensa lhe garantiu nada menos que o Prêmio de interpretação feminina em Cannes. O filme narra a história de sua personagem, Cleusa, que com todas as dificuldades criou seus quatro filhos em um bairro periférico de São Paulo, em meio aos dramas, sonhos e pesadelos que cada um deles vive no dia a dia cruel de uma metrópole frenética e insana como é a capital paulista.


O ódio (La haine)
Direção: Mathieu Kassovitz
França, 1995, 98 min

O ódio já se tornou um filme clássico, uma obra absolutamente imprescindível. O filme narra a trajetória de três jovens amigos, que vivem na periferia de Paris. Esse é o fio condutor para uma contundente crítica social apresentada pelo diretor Matheiu Kassovitz, que revela uma realidade bem menos gloriosa que a daquela Paris da Champs-Élysées ou da Torre Eifel. Encalacrados entre a violência policial e a falta de perspectivas em uma sociedade racista, preconceituosa com a religiosidade islâmica, cada vez mais presente em muitos países da Europa, e também bastante segregadora, resta a violência a uma parte dessa juventude que o filme retrata de maneira brilhante. 


Cidade cinza 
Direção: Marcelo Mesquita e Guilherme Valiengo
Brasil, 2013, 85 min

Otávio e Gustavo Pandolfo, os mundialmente conhecidos e reconhecidos osgemeos, são artistas do grafite absolutamente geniais. Eles são o fio condutor desse instigante documentário que se propõe a discutir séria e profundamente a questão da pichação e do grafite na cidade de São Paulo. A história dos artistas se confunde com a própria história do grafite e dos grafiteiros que emprestam seu talento e questionam os padrões estéticos da cidade cinza, da selva de pedra que ainda insiste em ver as cores dos murais grafitados como transgressão. Com trilha original de Criolo e Daniel Ganjaman, o documentário é fundamental para discutir mais essa faceta do direito à cidade.


À margem do concreto
Direção: Evaldo Mocarzel
Brasil, 2005, 85 min

Documentário fundamental sobre o movimento de moradia no centro da cidade de São Paulo, À margem do concreto é daqueles que reúnem depoimentos absolutamente envolventes, como nos melhores filmes do mestre Eduardo Coutinho. Há muita semelhança na forma como Mocarzel conduz a narrativa de seu documentário, que percorre diversas ocupações na região central de São Paulo e também nas periferias, com a maneira como Coutinho produziu seus documentários. 

O filme dá uma visão exata da dimensão política que há em torno da luta pelo direito à moradia. Mais uma obra imperdível!


Rap, o canto da Ceilândia
Direção: Adirley Queirós
Brasil, 2005, 15 min

A história de Brasília é um capítulo controverso da nossa história. É a síntese perfeita da mentalidade modernista daqueles anos 1950, quando a nova capital surgiu a toque de caixa, com tantas contradições. Erigir uma capital urbanística e arquitetonicamente elaborada, como é o caso de Brasília, demandou uma quantidade absurda de mão de obra. Gente que migrou de todas as partes do Brasil em direção à nova capital federal, em busca da “terra prometida”, das grandes oportunidades. Mas no Plano Piloto não havia espaço para esses braços que construíram a cidade em tempo recorde. Dentre as muitas formas de expulsar os trabalhadores da área nobre da recém criada cidade, houve a criação da CEI (Campanha de Erradicação de Invasões), que deu origem a maior de todas as regiões administrativas de Brasília, a Ceilândia. A história dessa população é contada por nomes importantes da cena do rap da Ceilândia, nesse documentário de 2005, que além de uma boa obra de pesquisa, em que apresenta imagens dos primeiros moradores da Ceilândia, que chegaram sem as mínimas condições de habitabilidade, traz também ótimos depoimentos desses artistas ceilandenses contemporâneos que não esquecem suas origens e valorizam sua identidade ceilandense. 


*  Cursou Bacharelado e Licenciatura em História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Professor e redator de materiais didáticos, com passagem por editoras e instituições de ensino da Grande São Paulo, em turmas de Ensino Fundamental 2, Ensino Médio, e cursos pré-vestibular. Atuou na Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade (SDTS) da Prefeitura do Município de São Paulo (PMSP) na gestão 2001-2004, no Programa Bolsa Trabalho. Atualmente, atua na formação de professores e na organização e coordenação de viagens pedagógicas para realização de trabalhos de campo e estudos do meio em diversas instituições pelo Brasil.

1 comentário

  1. Felipe Valentim em 29 de fevereiro de 2020 às 16:30

    Esse é um assu tô interessante e urgente para o momento, inclusive para as crianças, será que rola uma lista de filmes infantis? O curta de Kátia Lund Bilu e João, ou o filme O menino Maluquinho, alguém conhece outros?

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