trabalho escravo respeitar

O dia 13 de maio, aniversário da abolição da escravidão no Brasil, é uma data prenhe de contradições, tanto quanto rica de significados. Obviamente que celebrá-lo como uma benesse concedida pelo Império (ou, ainda pior, pela princesa) é mistificar a constante movimentação de abolicionistas, libertos e cativos na época.

Para homenagear os lutadores, as ações de resistência ao cativeiro e o elogio à liberdade da população afro-brasileira, há o 20 de novembro, aniversário de morte de Zumbi dos Palmares. Nem mesmo a oficialidade reserva ao 13 de maio a atenção de um pronunciamento,guardando esse lugar quase sempre para o “rival” Dia das Mães.

No entanto, a Lei Áurea tem uma importância enorme na história da cidadania brasileira: somente com o fim da escravidão, todos os outros direitos subjetivos se tornam possíveis, já que apenas o homem livre é um sujeito de direitos.

O comércio transatlântico de cativos africanos consistiu a maior imigração forçada da história. Entre 1501 e 1875, mais de 12 milhões de africanos foram retirados de seus lugares de origem rumo ao desconhecido. Cerca de 5 milhões vieram para o Brasil ¹.

A economia e a sociedade deste país formaram-se extremamente dependentes do escravismo como instituição. Desde a captura e a submissão na África, até seu trabalho nas lavouras e nas cidades, passando por seu comércio para o Brasil e os países vizinhos, os colonos portugueses e posteriormente os brasileiros independentes estavam envolvidos até o pescoço com a escravidão.

De modo que, ao longo do século XIX brasileiro, diante do crescimento do abolicionismo aqui e por parte da comunidade internacional, o escravismo como instituição sobreviveu no limiar entre a legalidade e a ilegalidade. E se prolongou, da proibição do tráfico internacional e sua burla, passando pela suspensão definitiva, para depois conter a tendência abolicionista no país (Ventre Livre, Sexagenários), até quando foi possível.

De tal maneira que o Brasil foi último país independente do sistema atlântico a tornar ilegal a força de trabalho cativa, adiando, assim, a construção – diferentemente dos vizinhos americanos e europeus –de uma sociedade industrial, mediada por relações de trabalho assalariado, em condições de competir economicamente numa nova configuração do mercado mundial.

Embora nunca seja demais repisar as marcas da “herança escravista” no Brasil, o fato é que o ano de 1888 torna ilegal o que já era moralmente abominável e socialmente derrisório. Cem anos depois, a Constituição de 1988, consonante com a linguagem dos Direitos Humanos Internacionais, apresenta, entre os princípios fundamentais do Estado, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. Princípios nascidos da memória de atrocidades do passado, em que pesava imensamente a experiência continental americana da escravização de nativos, africanos e afro-americanos, que transformava pessoas em mercadoria.

A erradicação de todas as formas de exploração baseadas no cerceamento da liberdade e na coerção física ainda é um horizonte numa luta que não terminou. Os abolicionistas de hoje denunciam que milhões de pessoas ainda vivem em condições análogas às de escravidão, contrariando convenções assinadas por países membros da Organização das Nações Unidas (ONU).

Desde 2013, a WalkFree Foundation coordena um fundo privado dedicado à conscientização sobre a escravidão contemporânea, que publica anualmente um relatório chamado Global Slavery Index². A WalkFree utiliza pesquisa de campo e métodos estatísticos para produzir dados como: prevalência de trabalho escravo por país, índice de vulnerabilidade à escravidão e impacto das políticas públicas nas populações afetadas.

O Index de 2016 estima que 45,8 milhões de pessoas trabalhem hoje sob coerção física ou psicológica. Os dados indicam que 58% delas estão na Ásia e grande parte está na África e no Oriente Médio³.

O Brasil é tido como um exemplo na investigação do fenômeno da escravidão contemporânea e em iniciativas para coibi-la, principalmente no meio rural. Investigador da questão agrária no país desde os anos 1970, o sociólogo José de Souza Martins foi dos primeiros a examinar o que chamou de“renascimento da escravidão” no Brasil daquele período 4.

Ao pesquisar a expansão da fronteira agropecuária na região amazônica, estimulada pelo governo militar, Martins analisou casos confirmados de trabalho forçado de 1970 a 1993. Essas estatísticas davam conta de cerca de 300 mil trabalhadores escravizados no período, cuja força de trabalho foi empregada principalmente no desmatamento e em atividades de “abertura de fazenda”: basicamente, o trabalho era “abrir caminho” para a exploração posterior da terra.

Ao comparar o processo com a expansão do cultivo do café em São Paulo no século XIX (que utilizou mãodeobra cativa da época), o sociólogo articula a categoria de “fronteira” para explicar como um processo de modernização comporta diversas modalidades de relações de trabalho, inclusive algumas que estão no limiar de relações de fato “contratuais” e livres. Assim é que, em pleno século XX, o crescimento da economia de mercado faz renascer a relação escravista, não pela compra e venda de pessoas em cativeiro, mas por dispositivos de superexploração da força de trabalho, como a peonagem, ou servidão por dívida.

A dívida funciona como um mecanismo de coagir as relações, atrelando o trabalhador à condição subalterna indefinidamente. Ela funciona como um sistema de recrutamento, do qual participam comerciantes, transportadores e hospedarias, de modo a transferir ao trabalhador todo o custo necessário à sua atividade, a ponto de ele não mais poder quitá-las. Diante da dívida, a coação pelo uso da força se legitima, por vezes até para o empregado. Essa rede ampla de recrutamento envolve percursos interestaduais e, comumente, internacionais.

Essas regiões fronteiriças onde a força de trabalho é superexplorada estão espalhadas pelas cadeias de produção de bens e mercadorias, tanto locais quanto globais. Franjas da economia, escondidas do público, em que o trabalho tem um valor irrisório. Quase todo o processo de produção que resulta naquilo que consumimos tem suas áreas de fronteira, desde a indústria têxtil até a de eletrônicos.

Uma forma de conscientizar o consumidor e pautar o tema no debate público é uma iniciativa da Repórter Brasil, organização criada em 2001, cujo eixo central é o combate à escravidão. Elogiada em diversas instâncias internacionais, a constituição da “lista suja” do trabalho escravo é resultado de um esforço de pesquisa da Repórter Brasil junto à Organização Internacional do Trabalho(OIT) e o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) sobre a cadeia produtiva do trabalho escravo no Brasil.

Em 2003, a Portaria n. 1.234 do MTE criou a “relação de empregadores que submetem trabalhadores a formas degradantes de trabalho ou os mantêm em condições análogas à de trabalho escravo”, como um instrumento de controle e transparência pelo Estado brasileiro.

No fim desse mesmo ano, a Lei n. 10.803 alterou o artigo 149do Código Penal, explicitando o crime de submissão ao trabalho forçado, condições degradantes, jornada exaustiva, restrição de locomoção e servidão por dívida, estabelecendo pena mínima de dois a oito anos para os envolvidos. Mais tarde, também foi incluído um artigo referente ao tráfico de pessoas, o que expande sensivelmente, no texto da lei, a compreensão do fenômeno das redes migratórias de recrutamento de trabalho forçado.

A “lista suja” provocou enorme impacto no debate público, bem como reações de diversos setores privados e estatais5. Há dois anos, sua portaria tem sido alvo de embargos e revisões, que contrapuseram órgãos do Judiciário como o Ministério Público do Trabalho contra o Poder Executivo, como o próprio MTE .

De qualquer maneira, sem desprezar tudo o que foi feito anteriormente, neste início de século, o tema da escravidão ganhou uma proeminência indiscutível, envolvendo batalhas comerciais, judiciais e geopolíticas em torno do problema da exploração humana.
Uma cooperação internacional pela criação de uma esfera pública de consciência moral; ações como boicotes e embargos; o enfrentamento à posição cambiante entre Estados nacionais e empresas transnacionais quanto à responsabilização por crimes contra a dignidade humana; uma militância difusa, ativa na criação de um vocabulário renovado de direitos diante de uma incontornável e silenciosa multidão em sofrimento e revolta.Poderia ser isso, ontem como hoje, o abolicionismo ?

¹ Conforme encontra-se no inestimável banco de dados do SlaveVoyages, que compila enorme número de pesquisas sobre o tema do tráfico transatlântico de escravos.

² A publicação completa está disponível aqui.
³ Que seja dito: não faltaram críticas à precisão deste índice e à eficácia de sua estratégia em “expor à vergonha coletiva” países de economia dependente, em vez de exaltar o papel dos países centrais em reforçar sua condição dependente e, portanto, sua vulnerabilidade ao trabalho escravo, conforme se lê em edição de 2014 do The Guardian.
4 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra (São Paulo: Contexto, 1979); MARTINS, José de Souza. “A reprodução do capital na frente pioneira e o renascimento da escravidão no Brasil”, Revista Tempo Social, 6(1-2), São Paulo, 1994 (disponível em PDF).

5 Um caso célebre foi a autuação da empresa multinacional de moda Zara, compilado pela Repórter Brasil (disponível aqui ). Para a dimensão da difusão das ações do Ministério Público do Trabalho nessa seara, ver seu informativo diário, disponível aqui.
Para um resumo dos incidentes enfrentados pela “lista suja”, escrito por um dos fundadores da Repórter Brasil, ver matéria recente de Leonardo Sakamoto.
Uma instrutiva linha do tempo do combate ao trabalho escravo no Brasil (1957-2015) foi produzida pelo também vocacionado Instituto InPacto Material disponível aqui
O abolicionismo como movimento social foi investigado a fundo pela historiadora Angela Alonso emFlores, votos e balas (São Paulo: Companhia das Letras, 2015). Sobre o tema, há também um artigo em que a autora resume sua tese (disponível em PDF).

Deixe um Comentário